A Coruja-das-torres e as Estradas em Portugal

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A CORUJA-DAS-TORRES E AS ESTRADAS EM PORTUGAL: uma coexistência condenada ao fracasso?

Clara Silva & Clara Grilo, Abril 2018

 

O que se sabe sobre o efeito das estradas nas corujas?

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As estradas e o tráfego associado são considerados um dos principais agentes causadores de fragmentação e perda de habitat para muitas espécies (Forman et al. 2002, Van der Ree et al. 2015). Em particular, a mortalidade direta por atropelamento e a limitação dos movimentos parecem estar a afetar a diversidade, densidade e comportamento de muitas espécies de rapinas, tornando as suas populações particularmente vulneráveis à escala nacional e europeia (Slater 2002, Erritzoe et al. 2003, Ramsden 2003, Bautista et al. 2004, Grilo et al. 2012).

Todas as espécies de rapinas noturnas que habitam a Península Ibérica estão sujeitas em maior ou menor grau a esta ameaça, sendo a coruja-das-torres (Tyto alba) a que se destaca de forma mais significativa. Nos últimos anos, tem-se vindo a observar uma diminuição da densidade populacional desta espécie em alguns países europeus (Fajardo 2001, López 2003, Ramsden 2003). Uma das causas poderá ser a mortalidade adicional resultante da colisão com os veículos. Na verdade, o voo de baixa altitude torna estes indivíduos particularmente vulneráveis ao tráfego automóvel (e.g. Fajardo 2001, Meek et al. 2003, Martinez & Zuberogoitia 2004, Bautista et al. 2004, Orlowski 2008).

A mortalidade por atropelamento e a observação de muitos cadáveres de coruja-das-torres chamou a atenção de investigadores e concessionárias das estradas em Portugal. Por isso existem vários estudos com estimativas de atropelamentos desta espécie ao longo dos últimos anos. Alguns deles estão focados nas estradas nacionais do Alentejo e outros são decorrentes de monitorizações de atropelamentos de vertebrados terrestres das estradas concessionadas pela Brisa Autoestradas de Portugal (Brisa) e pela Infraestruturas de Portugal (IP) e que tiveram início em protocolos celebrados com a Universidade de Lisboa.

Um estudo que decorreu entre agosto e novembro de 2004 ao longo dos 314 km de estradas nacionais no Alentejo com uma monitorização quinzenal, registou uma média de 1.17 ind./km/ano (Silva et al. 2008). Este período corresponde à época de dispersão em que os subadultos percorrem grandes distâncias para estabelecerem novos territórios. Nesses movimentos de dispersão há uma maior probabilidade de atravessarem as estradas o que aumenta o risco de atropelamento. A particular vulnerabilidade dos subadultos em relação ao tráfego rodoviário pode ser devida à reduzida perceção do perigo. Ao estarem a percorrer novas áreas não se apercebem do risco que os veículos representam e tentam atravessar a estrada. Nas mesmas vias e ao longo de cinco anos de monitorização quinzenal, a taxa de mortalidade média estimada foi de 0.35 ind./km/ano (Grilo et al. 2014a), o que demonstra bem que a elevada incidência de atropelamentos ocorre sobretudo quando os indivíduos estão a dispersar. A nível nacional a IP registou 189 corujas-das-torres atropeladas entre abril de 2010 e dezembro de 2013 ao longo de mais de 13 000 km de estradas sob a sua concessão. É de notar que a monitorização das estradas não era sistemática nem regular e os valores deverão estar bastante subestimados (Grilo et al. 2014b). Por outro lado, os colaboradores da assistência rodoviária da Brisa, que efetuam um patrulhamento regular dos 1093 km de autoestrada, registaram 389 indivíduos entre 2003 e 2009 (Grilo & Santos-Reis 2010). Embora a monitorização seja sistemática, existem vários fatores que podem estar a contribuir para a limitada deteção destes indivíduos que devem ser tidos em conta nesta análise. A reduzida motivação do observador ou a pouca experiência de observação de cadáveres no asfalto, as más condições climatéricas e o reduzido tamanho corporal são as principais causas do baixo número de registos a nível nacional. No entanto, estas monitorizações são de uma enorme importância para dar a conhecer os padrões de mortalidade, quer espaciais, quer temporais e ainda detetar elevadas incidências de mortalidade em alguns segmentos de estrada que permitem às concessionárias corrigir com medidas de minimização da mortalidade. Um dos casos foi no IC1 no km 632.5-633.5 (perto de Aljustrel) com 23 registos em pouco mais de dois anos (Grilo et al. 2014b). Tanto quanto se sabe não se conhece qual o impacto desta elevada mortalidade na população de coruja-das-torres naquela zona. Um estudo que avaliou a viabilidade populacional da coruja-das-torres resultante da mortalidade por atropelamento (Borda-de-Água et al. 2014), estimou que uma população apresenta um elevado risco de extinção local quando o número de indivíduos atropelados atinge 30% da população. Tendo em conta que a densidade populacional no Alentejo varia entre 0.01 e 2 ind./km2, o impacto da mortalidade pode levar ao desaparecimento de indivíduos naquela zona ao ponto de deixar de se observar atropelamentos (Teixeira et al. 2017). O facto de ocorrer num km específico pode não promover o declínio da população na região mas sim constituir um sorvedouro de indivíduos e deste modo numa zona com territórios a serem ocupados por vários indivíduos num mesmo ano.

 

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Coruja-das-torres. Foto: Clara Silva.

Os segmentos de estrada com maior risco de atropelamento desta espécie ocorrem em áreas de agricultura extensiva, distantes de áreas urbanas e com tráfego rodoviário de maior intensidade (que varia entre 400 e 5500 veículos por dia) (Grilo et al. 2014a). As áreas de agricultura extensiva são consideradas um habitat bastante favorável à ocorrência desta espécie. No entanto, a probabilidade de atropelamentos não parece estar relacionada com a ocorrência de indivíduos na vizinhança (Grilo et al. 2014a). Os indivíduos podem ocorrer na zona mas só patrulham as imediações das estradas quando o tráfego é menor ou quando existem linhas de água que atravessam a infraestrutura e que poderão apresentar uma elevada disponibilidade de presas (Grilo et al. 2012). Aparentemente esta espécie parece ser particularmente vulnerável às estradas por patrulharem as suas bermas a muito baixa altitude (Grilo et al. 2012, 2014a). Na A2 verificou-se que havia uma maior abundância de presas nas bermas do que nas áreas em redor dos ninhos mais próximos o que poderá levar estes indivíduos a procurarem estas estruturas como habitats subótimos de alimentação (Felipe 2008). Mas o menor risco de atropelamento parece estar associado à presença de vedação que separa a área concessionada das propriedades envolventes e que pode prevenir o voo a baixa altitude e assim evitar a colisão com veículos (Gomes et al. 2008). Embora haja observações de que os indivíduos tendem a ignorar o tráfego rodoviário (Grilo et al. 2012), este parece ter um efeito negativo na seleção dos locais de nidificação (Felipe 2008). Os fatores que promovem a colisão por atropelamento parecem ser uma combinação de características de voo com a disponibilidade de alimento perto das estradas (bermas ou linhas de água que as atravessam) aliado à pouca perceção do perigo dos veículos.

 

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Coruja-das-torres. Foto: Clara Grilo.

 

Qual o melhor “caminho” para a conservação da coruja-das-torres?

Com base no conhecimento dos efeitos das estradas nas corujas, existem várias medidas de mitigação específicas e outras ações mais gerais que podem promover a conservação desta espécie em ambientes com estas infraestruturas lineares:

a) Manutenção dos efetivos populacionais longe das estradas, através da conservação das características estruturais e funcionais dos seus habitats, o que passa em larga medida pela manutenção e maneio tradicional das atividades agrícolas, que estão largamente dependentes da política agrícola nacional (Pons 2000, Reino 2000). Neste sentido, devia-se investir em políticas agroambientais e de encorajamento da preservação e recuperação dos seus habitats. A conservação das áreas de cultivo, bem como as zonas tampão que as ladeiam, aumentam a disponibilidade de áreas de caça. Em paralelo, deverá proceder-se ao corte periódico da vegetação espontânea nas bermas da estrada, reduzindo assim a disponibilidade de micromamíferos e à retirada de postes junto às estradas que possam constituir poisos de caça (e.g. Seiler 2001, Ascensão et al. 2003, Jacobson 2005, Van Nieuwenhuyse et al. 2008);

b) Colocação de caixas-ninho para compensar mortalidade adicional por atropelamento longe das estradas o que permitirá promover o sucesso reprodutivo nestes meios e contribuir para aumentar a densidade dos seus efetivos a médio prazo (e.g. Forman et al. 2002, Altwegg et al. 2003, López 2003, Ramsden 2003, Martínez & Zuberogoitia 2004, Van Nieuwenhuyse et al. 2008, Silva et al. 2012);

c) Restabelecimento da conectividade do seu habitat fragmentado pelas estradas através de medidas que minimizem não só o efeito de repulsa reconhecido nestas aves, mas também a mortalidade por atropelamento. Existem várias opções consoante o ambiente em redor da estrada: a colocação de barreiras de estruturas acústicas artificiais em ambientes mais urbanos, corredores arbóreos plantados a cerca de 15-25m longe das bermas em ambientes mais rurais, sobre-elevações de terra em áreas rurais planas, de modo a promover um voo acima dos veículos em circulação (e.g. Pons 2000, Geneletti 2003, Gutzwiller et al. 2003, Jacobson 2005, González et al. 2007, Grilo et al. 2014a).

 

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Bermas altas. Foto: Clara Grilo.

A maioria dos Strigiformes que ocorrem em Portugal, apresenta um estatuto de conservação desfavorável no nosso país e/ou Europa segundo a BirdLife International, onde a mortalidade nas estradas é um dos principais fatores de ameaça. Na última década, estudos nacionais de ecologia desta espécie têm apresentado resultados que comprovam os impactos negativos das estradas e tráfego associado nesta espécie e recomendações de medidas de mitigação. Duas questões se impõem: O que leva a que esta espécie ainda possua uma posição delicada em termos de conservação em Portugal? Porque é que a mitigação dos efeitos negativos das estradas nesta rapina noturna ainda é negligenciada?

Para contrariar a falta de atenção que tem sido dada à conservação desta espécie sugerimos que seja criado um grupo de trabalho que inclua ONG, centros de investigação, entidades estatais de conservação e agências de transportes, no sentido de encontrar as melhores soluções para minimizar os impactos negativos das estradas na coruja-das-torres. Esse grupo de parcerias deveria fomentar a realização de um programa de monitorização sistemático, para conhecer a dinâmica das suas populações e os fatores associados (p. ex. sucesso reprodutivo, disponibilidade de presas, comportamento espacial) perto e longe das estradas, para que se adotem medidas de conservação eficazes a médio/ longo prazo (Van Nieuwenhuyse et al. 2008).

 


Clara Silva

É bióloga e Mestre em Biologia da Conservação pela Universidade de Évora. Desde 2004 que academicamente se dedicou à investigação da influência das rodovias na densidade e mortalidade das aves de rapina noturnas no sudoeste de Portugal, tendo publicado artigos nessa área.

Paralelamente têm realizado trabalhos de formação, consultadoria, gerido projetos ambientais e de sensibilização ambiental de RH em contexto empresarial público e privado. Atualmente com especialidade em Gestão da Sustentabilidade, tem abraçado projetos de educação ambiental, formação e empreendedorismo para o desenvolvimento sustentável em escolas, ONGD’s e entidades privadas.

 

Clara Grilo

É bióloga e doutorada em Biologia da Conservação pela Universidade de Lisboa. A sua área de investigação tem-se centrado nos efeitos das estradas na abundância relativa, comportamento, risco de mortalidade e as suas implicações na estrutura genética e viabilidade populacionais de aves e mamíferos em Portugal, Espanha e Brasil.

 


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