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A coruja Natália sempre foi teimosa. Ainda bebé, com muito poucas penas, queria voar. Vinha para fora do buraco onde nasceu, lá bem no alto de um sobreiro, e, pé ante pé, avançava até à extremidade do ramo mais comprido da árvore. Era uma caminhada corajosa e Natália tinha sempre alguma dificuldade em manter o equilíbrio, na parte final do caminho. O ramo, de tão fino, balouçava ao mais pequeno sopro de vento. Era dali que Natália via tudo sem impedimentos e achava ser o melhor local, para treinar os seus primeiros voos. Natália gostava de ver o que existia para lá da sua árvore.
É claro que todos sabemos que as corujas vêem muito bem. Pois, isso todos sabem! E a Natália, uma bonita coruja-das-torres, não é excepção! O problema, naquela árvore, o tal sobreiro, eram as folhas: a quantidade de ramos finos e folhas era tão grande que só mesmo daquele ramo comprido, podia ver-se para fora da árvore. Naquele sítio, mesmo no final do ramo, não havia folhas e, por esta razão, desde o primeiro dia em que Natália descobriu isso, fazia o mesmo todas as noites – pé ante pé, como já dissemos, lá ia ela até à sua varanda, de onde podia avistar as luzes coloridas, bem distantes, da cidade. E, nesses momentos, sonhava com saber voar.
Um dia, uma noite, quero eu dizer, Natália esperava ansiosamente que os pais saíssem. Ao contrário da sua irmã, nem sequer pensava em comer, tal era a vontade de sair de casa. Não interessava nada se os pais iam hoje à quinta grande, de onde vinham os melhores ratos, ou aos campos próximos da igreja amarela, abandonada há muito, de onde vinham, também, uns excelentes musaranhos. Nada disso tinha importância. Natália ficou bem quieta, junto à saída de casa e só lhe vimos um sorriso assim que os pais partiram, para mais uma noite de caça.
Como sempre, ao sair, os pais tornaram a alertar as duas irmãs. Deviam ficar sossegadas e em silêncio, dentro de casa. Só assim poderiam aprender todos os barulhos que vinham do campo, à noite. O que, insistia sempre a mãe, era muito importante para uma coruja. Devemos saber ouvir, dizia ela, só assim poderemos viver muitos anos. Mas Natália, assim que os pais saíram, esqueceu tudo o que lhe tinham dito e, zás, para fora de casa. Acontece que, nessa noite, o vento estava um pouco mais forte que nos outros dias. Natália até já tinha pensado nisso, mesmo antes de sair de casa, tal era o ruído que as folhas faziam. Assim, com um pouco mais de dificuldade, a nossa coruja teimosa lá foi andando; com passos curtos, entusiasmada, apertava as garras contra o ramo e seguia um pouco trémula, equilibrando-se o melhor que podia com as asas.
Com um pouco mais de dificuldade, chegou ao seu cantinho habitual que, hoje, estava particularmente bonito – sem nuvens, viam-se bem as cores das luzes: amarelas, azuis e encarnadas. Umas eram muito brilhantes e cintilavam como as estrelas, só um pouco mais coloridas, e Natália, com saltinhos de entusiasmo, abanava as poucas penas que tinha e, deste modo, a cada batidela de asas, conseguia elevar-se no ar. E foi assim, por causa destas batidelas, que, num instante, o vento ajudou Natália a fazer o que todas as noites ela tentava ter coragem para fazer: voar. Bem… voar, voar não voou. Ao esvoaçar, com pequenos saltos, Natália nunca pensou que o vento pudesse soprar um pouco mais forte e, num instante, foi empurrada para a frente. Acabou por cair a uma velocidade tão grande que quase não teve tempo para pensar. Batia as asas, torcia-se, alongava o curto pescoço e esticava as pernas, aflita, tentando prender-se a algum ramo, mas … nada! Sentiu o vento na cara, um ruído estranho, os olhos cada vez mais secos e acabou por desistir – sem esperança, fechou os olhos e deixou-se cair até ao chão.
No meio disto tudo, acabou por ter muita sorte. Foi mesmo cair por cima de umas folhas secas que o vento, o mesmo vento que a tinha empurrado, arrastou para junto do sobreiro. Assustada, olhou para cima, ainda sem perceber bem o que lhe tinha acontecido. Reconheceu a sua árvore e saltitou para junto do tronco. Bem encostada ao tronco, empurrava as costas contra este e olhava em todas as direcções. Não havia nada a fazer: tinha caído. Até os pais chegarem, tinha de manter-se junto à árvore. Tudo era diferente aqui em baixo. Quase não se sentia o vento, não se viam as luzes, era tudo mais escuro, não se viam as estrelas. Nesse momento, lembrou-se das palavras da mãe, quando lhe dizia como era importante ouvir… como era importante ouvir, pensou… e, imóvel, no mais absoluto silêncio, escutou. A princípio, ouviu uns batimentos rápidos, não muito fortes, e esboçou um sorriso. Este som era-lhe familiar, ouvia-o sempre que dormia com a cabeça encostada ao peito da sua irmã. Era o coração, tinham-lhe dito os pais. Mas, logo de seguida, ouviu um som persistente vindo de umas ervas.
Ficou parada, um pouco aflita; lembrou-se do pai, que distinguia qualquer ruído que ouvisse no chão, mesmo lá do alto da árvore. De entre as ervas, saiu um rato pequeno. Ficou a vê-lo afastar-se e sentiu um pouco de fome. Ganhou um pouco mais de coragem e andou em volta da velha árvore. Mesmo junto à base, havia uns pedaços de cortiça, colocados uns em cima dos outros. Arrastou-se e conseguiu colocar-se no meio deles. Assim, estava melhor, mais escondida e com possibilidade de ver tudo à sua volta. Bastava colocar um pouco a cabeça de fora e rodá-la, para um lado e depois para o outro; e as corujas fazem isso muito bem. Mas nem foi preciso espreitar para fora do seu esconderijo para ouvir outro som, desta vez, mais forte. Parecia que batiam no chão, podia até sentir as vibrações na cortiça. A tremer, jurou nunca mais sair de casa. Espreitou com cuidado e viu um animal que nunca tinha visto. Estava longe, mas dava para ver que era enorme, parecia andar com alguma pressa e não tinha asas, tal como os ratos. Muito maior do que um rato, Natália nunca tinha visto um ser tão grande. Como era encarnado, pensou, talvez fosse uma raposa – um dos animais que os pais diziam sempre não gostarem muito das corujas. Pensou em como seria fácil fugir-lhe, se soubesse voar. Sair de casa sem saber voar tinha sido uma tolice; como entendia bem, agora, o que lhe diziam os seus pais. Suspirou assustada. Havia pouco que pudesse fazer; restava-lhe esperar, em silêncio, até os pais chegarem. Com alguma sorte, ela conseguiria chamá-los e eles saberiam o que fazer.
A raposa passou a um palmo da Natália. Nunca ficaremos a saber por que razão não a viu. Apesar de muito quieta e com a cabeça entre as asas, foi mesmo uma sorte. As raposas encontram muitas coisas, graças ao seu poderoso olfacto. E conseguem muito bem cheirar uma pequena coruja, à distância. Mas não foi o que aconteceu; não nesta história. E a nossa coruja pode muito bem guardar na memória todos os sons que ouviu, vindos da raposa.
Quase não se sentia o vento. Natália começou a achar que talvez fosse melhor espreitar; afastar-se um pouco da árvore e tentar ver a sua casa. Para isso, teria de sair deste lugar, pois, sempre que olhava para cima, só via ramos e folhas. Cautelosamente, colocou a cabeça de fora do seu abrigo de cortiça. Girou-a, como se fosse a luz de um farol e, de uma só vez, viu que tudo estava sossegado em seu redor.
(Eu já vos tinha dito que as corujas conseguem ver para trás das costas, ao rodar assim a cabeça? Pois; isso é porque não conseguem mover muito os olhos, como nós, para os lados, para cima e para baixo. Olham sempre em frente e, por isso, rodam muito bem a cabeça.)
Mas voltando à nossa história, a Natália, ao ver que estava tudo calmo, saltou e correu até ao muro que estava mesmo ao lado. Desta forma, um pouco mais distante da sua árvore, apercebeu-se de que a cortiça, onde se tinha escondido, chegava quase aos primeiros ramos da árvore. Já sabemos que esta é uma coruja aventureira e corajosa. Teimosa, também. E foi assim que, sem pensar duas vezes, a Natália achou que conseguiria chegar a casa. Um pouco receosa, saltou para cima da cortiça e olhou para o ramo, mesmo por cima da sua cabeça. O primeiro salto que deu, e bem se esforçou, deixou-a muito longe do seu objectivo. Olhou novamente, abanou a cabeça para os lados, como se estivesse a dançar, e, sem retirar os olhos do ramo, dobrou um pouco as pernas e saltou. Desta vez, esteve quase.
Bateu com a cabeça no ramo e voltou de novo à cortiça. Foi falta de jeito, pensou. Passou a asa na cabeça; tinha sido uma pancada valente e as penas fofas evitaram um grande galo. Sentia-se animada; com fome, mas animada com a ideia de poder regressar a casa. Avançou para uma terceira tentativa; dobrou as pernas novamente e, desta vez, bateu as asas com tanta força que viu o ramo ficar para baixo, indo agarrar-se, com o bico, a outro um pouco mais alto. Que trapalhada! Quase caía do ramo outra vez, tal era o entusiasmo. Andou apressadamente para um lado e para o outro. Pensava na melhor forma de ir, de ramo em ramo, até ao cimo da árvore, até à porta da sua casa. Tinha de o fazer com cuidado, não fosse parar ao chão, novamente.
E assim, de ramo em ramo, umas vezes com saltos, outras elevando-se com o bico e as garras, chegou ao ramo mais grosso, mesmo à porta de sua casa, na copa da árvore. Tentava controlar a respiração pois tinha sido um grande esforço. Olhou para o local onde, todas as noites, imaginava a vida fora da árvore. Aproximou-se mais do buraco, no tronco. Exausta, saltou para dentro de casa. Reparou na sua irmã que se encontrava deitada e de olhos fechados. Tudo parecia tranquilo. Natália não tinha um pingo de força. Nem sequer conseguia fechar as asas, pareciam um casaco comprido a arrastar-se pelo chão. O que haveria de fazer? Como contar aos pais o que lhe tinha acontecido? O melhor seria não contar, pensou. Ficaria muito quieta, junto à sua irmã e, assim que os pais chegassem, logo depois de comer, pois estava com uma fome como nunca tinha tido, ouviria, muito calada, a história que eles costumavam contar, antes de se deitarem.
Estava decidido, era o melhor que tinha a fazer. Encostou-se à irmã e sentiu um calor agradável que passava do corpo dela para o seu. Olhou à sua volta e ficou contente por estar novamente em casa. Quente e segura, bem encostada à irmã, que continuava a dormitar, fechou os olhos. Lembrou-se da sua aventura. Agora, que o medo já passara, lembrava-se de como tinha achado tudo tão misterioso e, ao mesmo tempo, interessante. Pensou em como iria ser quando pudesse voar; que locais poderia conhecer. Sorriu, mesmo de olhos fechados, e pensou que não faltava muito para o Verão. Logo, logo, teria as penas necessárias para poder sair, primeiro, com os pais; depois, sozinha. Aprender a caçar, conhecer lugares afastados, diferentes e, como dizia a mãe, a seu tempo, ser capaz de voar tão rápido como o pensamento!
Estava quase a dormir quando ouviu um barulho. Abriu os olhos e viu o pai, logo seguido pela mãe. Pareciam também eles cansados. Comeu tudo o que lhe deram. Brincou com a mãe enquanto o pai passava o bico nas suas penas do pescoço. Aproximou-se mais dele e bicou-lhe carinhosamente as patas. Encostou-se para trás e olhou os pais e a irmã – como gostava deles. Pensou, pensou, fechou os olhos, abriu os olhos, pensou novamente e disse:
-Hoje, conto eu uma história.