A Taxonomia para Todos

«E o Senhor Deus modelou também de terra muitas espécies de animais selvagens e de aves

e apresentou-os ao homem, para ver que nome ele lhes dava.

O nome que ele dava a cada um desses seres vivos

é o nome com que ficaram.» Génesis 2:19

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Está na natureza humana tentar identificar e compartimentar o que nos rodeia. Desde o início que o Homem tenta organizar e classificar o mundo à sua volta. Nesta perspectiva, podemos dizer que a taxonomia é uma das mais antigas profissões desempenhadas pelo ser humano. Trata-se da ciência que é responsável por identificar, descrever, nomear (nomenclatura) e classificar os seres vivos.

Os cientistas que tratam da taxonomia são designados taxonomistas e talvez a sua maior preocupação seja conservar a biodiversidade do nosso planeta, o alvo do seu estudo! Há ainda que não descurar os naturalistas amadores, muitas vezes responsáveis, com a sua dedicação, pela descrição de novas espécies.

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Bufo-real.

 A designação atribuída pelos taxonomistas às espécies não só serve para sabermos qual o nome de cada uma das espécies, mas também nos ajuda a entender como estão as espécies relacionadas entre si. Ou seja, ajuda-nos a identificar padrões na Natureza e assim a melhor compreender a biodiversidade e a melhor forma de a proteger!

7Os cientistas estimam que, no presente, existam 30 milhões de espécies de plantas, animais (onde se incluem os mochos, os bufos e as corujas) e microorganismos a habitar a Terra (embora as estimativas variem entre os 3 e os 100 milhões!). Destas, apenas cerca de 1,7 milhões estão identificadas; se pensarmos que todas as espécies desempenham um papel nos diversos ecossistemas, o trabalho dos taxonomistas não só é importantíssimo como está longe de estar finalizado. Assim, os taxonomistas ainda vão para o campo, e, nos habitats naturais, procuram novas espécies, tal como antigamente. Trata-se de um trabalho árduo e exigente. Os espécimes, que são os elementos mais importantes na taxonomia, são recolhidos e guardados em museus ou em colecções, de forma a poderem ser estudados no presente, assim como por cientistas no futuro.

Os conservacionistas, ou seja os cientistas que trabalham na conservação da Natureza, usam ferramentas de identificação criadas com o contributo dos taxonomistas. Bases de dados, guias de campo, colecções e trabalhos de referência são as tais ferramentas que ajudam os conservacionistas a compreender a biodiversidade e a planear acções de protecção desses mesmos valores!

As características morfológicas dos espécimes são ainda hoje importantes na avaliação taxonómica, no entanto, presentemente, os cientistas dispõem de um grande número de ferramentas usadas no estudo dos padrões evolutivos, tais como microscópios electrónicos ou sequenciadores de ADN, que permitem abrir novas portas no estudo taxonómico.
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Coruja-das-torres.
Olhemos agora um pouco para a História da taxonomia e para a forma como a esta ciência se foi desenvolvendo ao longo do tempo:
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Na Grécia Antiga, assim como na Roma Antiga, eram dados nomes e classificados as plantas e os animais que se revestissem de interesse e utilidade para estes povos, então os principais alvos eram, por exemplo, plantas medicinais e animais que pudessem ser caçados ou domesticados.
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Foi nos finais do século XVI que a ciência que se dedicaria a atribuir nomes científicos iniciou a sua missão, embora a abordagem fosse muito diferente do que é hoje. Os nomes atribuídos pelos cientistas eram em latim, longos e polinomiais e pretendia-se que estes descrevessem as características das plantas ou animais. O Latim foi a língua escolhida uma vez que era esta a língua utilizada pelos estudiosos naquela época. No século XVIII, houve uma necessidade crescente de uniformizar e formalizar o uso dos nomes atribuídos e o uso consistente de um nome era cada vez mais importante, tendo em consideração que a exploração de novos territórios, como o Novo Mundo, levou a um incremento da biodiversidade até então conhecida.
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Coruja-do-mato.
A atribuição de um nome científico começou, ainda no século XVIII, com Carl (Carolus) Linnaeus (Suécia, 1707-1778). Linnaeus era um médico e botânico sueco que, com duas obras que ainda nos nossos dias têm impacto no que é a nomenclatura binomial e, por conseguinte na taxonomia, revolucionou a ciência do seu tempo. Este cientista tinha um interesse que ultrapassava as plantas e que se estendia a todos os organismos vivos. Em 1753 publicou o livro Species Plantarum, e foi nesta obra que ele utilizou, pela primeira vez, o nome binomial. A aceitação pelos estudiosos foi grande; tratava-se de um nome mais fácil de memorizar e, por isso, acabou por substituir o nome polinomial que era usado para descrever as diferentes espécies de plantas até então. O sistema binomial criado por Linnaeus é muito semelhante ao usado nos dias de hoje. Os taxonomistas criaram um sistema de regras para a atribuição dos nomes, começando, para a parte botânica, com a obra Species Plantarum, publicada em 1753, e, para a nomenclatura dos animais, com a 10.ª Edição de Systema Naturae, obra publicada em 1758. O nome científico dos animais, muitas vezes, reflectia características físicas das espécies descritas, facilitando, assim, a memorização do mesmo e providenciando, com o nome, uma descrição básica da espécie. O nome podia também ser atribuído em homenagem a alguém; Linnaeus gostava muito desta prática, tendo dado vários nomes a plantas em homenagem a pessoas a quem não era indiferente (quer pelos melhores quer pelos piores motivos, tendo, por exemplo, designado o género Sigesbeckia, que inclui pequenas ervas que crescem em terrenos lamacentos, em referência a um dos seus maiores críticos Johann Siegesbeck).
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Hierarquia taxonómica – Os taxa principais no sistema taxonómico são (do menos inclusivo para o mais inclusivo); a Espécie, o Género, a Família, a Ordem, a Classe, o Filo (animais), o Reino e o Domínio. Esta classificação parte então de uma organização hierárquica em que a Espécie é a unidade menos inclusiva e por isso a mais específica, sendo o Domínio o  taxon mais abrangente e heterogéneo. Há que mencionar que existem ainda subdivisões das categorias referidas acima, como a superfamília, a subordem, ou a subespécie.

No século XVIII, como já referido, devido ao incremento do número de espécies conhecidas, em particular nos Trópicos, os cientistas sentiam que identificar cada uma das espécies se demonstrava insuficiente, sendo também necessário pensar nas relações entre essas mesmas espécies. Os primeiros diagramas reflectiam a ideia de um princípio e de um fim, com o Homem no topo da escala evolutiva e uma visão a apenas duas dimensões da Natureza.

Com Charles Darwin (Inglaterra, 1809-1882), e através da sua Teoria da Evolução (com a obra A Origem das Espécies), a diversidade encontrada no nosso planeta passou a ser encarada pelos cientistas como parte de um processo dinâmico, quebrando a anterior perspectiva estática, suportada pela Teoria do Criacionismo (seguida por Linnaeus). Tal, tornou a descoberta, a documentação e o estudo da diversidade ainda mais apelativos, convertendo-os num trabalho em contínuo, não finito, como era encarado até então. Foi a dimensão temporal que foi trazida para a equação evolução e, assim, pela primeira vez, a multitude de espécies presentes na Terra já não era encarada como a mesma, desde o início dos tempos; a história era bem mais complicada e esta teoria revolucionou não só o pensamento científico mas a forma de encarar a vida no nosso planeta, por toda uma sociedade!

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Mocho-d’orelhas.

Nas primeiras décadas do século XX surgiu uma nova corrente de taxonomistas que vieram desafiar o statu quo científico que muito raramente questionava as, até então aceites, relações evolutivas entre grupos de plantas e animais. Foi na década de 30 que um entomologista alemão, de nome Willi Hennig (Alemanha, 1913-1976), revolucionou a forma de encarar as relações evolutivas entre organismos. As relações entre organismos passaram a ser avaliadas através de um sistema de teste de uma série de hipóteses, sendo a análise das relações de parentesco baseada em padrões evolutivos. Esta nova forma de encarar a taxonomia foi designada cladística (a palavra clado tem origem na palavra grega κλάδος e significa ramo). Segundo esta escola, cada grupo devia ser obrigatoriamente monofilético, ou seja, possuir todos os descendentes do ancestral comum e mais antigo do grupo, não considerando na classificação grupos parafiléticos (que não incluíssem todos os descendentes de um ancestral comum) e polifiléticos (que não incluíssem o ancestral comum de todos os indivíduos que o constituíssem). Se, aquando da publicação da obra de Hennig (e posterior tradução para inglês), foi gerada uma grande controvérsia, actualmente, as ideias defendidas por esta escola são amplamente aceites e seguidas pela comunidade científica.

6Os avanços tecnológicos alcançados no século XX potenciaram a análise das características dos organismos, de uma forma muito mais simples e, ao mesmo tempo, exaustiva. Há que referir, em particular, o microscópio electrónico de varrimento, cujas imagens de alta resolução, obtidas da superfície das amostras, permitiram a avaliação de características com um nível de pormenor elevadíssimo. Através de técnicas como a electroforese de proteínas, passaram a poder ser analisados, por exemplo, extractos de plantas ou de animais, sendo o estudo realizado, assim, a nível celular. No entanto, um dos maiores avanços tecnológicos, que provocou uma “revolução”, foi a invenção de métodos que possibilitaram a análise do código genético. A descoberta da forma e da função do ADN – ácido desoxirribonucleico permitiu aos taxonomistas estudar os genes que codificam as características dos organismos!
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Presentemente, com o constante desenvolvimento de novas metodologias e técnicas, o estudo taxonómico encontra-se numa fase deveras interessante, em busca de respostas para o grande número de questões que vão surgindo na tentativa de entender como é gerada a biodiversidade que encontramos no nosso planeta, sendo o papel deste ramo da Biologia vital para a conservação da Natureza!
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Classificação Científica
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Os taxa principais no sistema taxonómico são (do menos inclusivo para o mais inclusivo): a Espécie, o Género, a Família, a Ordem, a Classe, o Filo (animais), o Reino e o Domínio. Esta classificação parte então de uma organização hierárquica em que a Espécie é a unidade menos inclusiva e, por isso, a mais específica, sendo o Domínio o taxon mais abrangente e heterogéneo. Há que mencionar que existem ainda subdivisões das categorias referidas acima, como a superfamília, a subordem ou a subespécie.
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No sistema de nomenclatura binomial há uma uniformização da classificação dos seres vivos, com regras para a atribuição de um nome. A existência de um nome facilita a comunicação e as normas para a criação do mesmo são muito importantes, tornando os nomes universais (e assim aceites pela comunidade científica)! Se pensarmos, por exemplo, que em Portugal o mocho-galego é conhecido por diversos nomes-comuns, como ave-gatinhas, chio e papagaio-saloio, tornar-se-á fácil compreender que seria muito complicado, se juntássemos aos referidos todos os nomes-comuns em castelhano, inglês, francês, italiano, etc., saber de que animal estaríamos a falar! O sistema de nomenclatura binomial veio permitir diferenciar as diversas espécies e identificá-las automaticamente, sem levar em conta a língua do investigador!
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códigos internacionais que estabelecem as regras fundamentais para a atribuição dos nomes científicos. Relativamente aos animais essa atribuição encontra-se a cargo da Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (International Commission on Zoological Nomenclature – ICZN). Analisemos algumas das regras que merecem ser realçadas:
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– As designações dos taxa devem ser realizadas preferencialmente em latim (ou numa versão latinizada da palavra ou das palavras);
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– o nome das espécies é constituído por duas palavras (nomenclatura binomial). A primeira palavra, designada nome genérico, é um substantivo com maiúscula inicial e refere-se ao género a que o ser vivo pertence. A segunda palavra, epíteto específico, adjectiva a primeira e escreve-se com minúscula inicial;
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– quando não sabemos qual a espécie em questão, mas apenas a que género pertence utiliza-se a abreviatura sp. (por exemplo: Asio sp. pode referir-se a Asio otus ou Asio flammeus);
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– utiliza-se a abreviatura spp. quando estamos na presença de várias espécies do mesmo género e/ou quando a identificação dessas espécies é desconhecida. Por exemplo, se nos quisermos referir às diversas espécies de Strix que existem a nível mundial, a denominação será Strix spp. (em Portugal ocorre a coruja-do-mato, Strix aluco);
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– quando se pretende designar uma subespécie é necessário acrescentar uma terceira palavra (escrita com inicial minúscula) ao sistema binomial. Por exemplo, Strix aluco sylvatica, refere-se à subespécie de coruja-do-mato que podemos observar em Portugal;
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– os taxa acima de espécie são uninominais, ou seja, são apenas constituídos por uma palavra, que deve ser escrita com inicial maiúscula, representativa do plural. Por exemplo: “Os Strigiformes são uma ordem onde se incluem aves de rapina, a maior parte delas com hábitos sobretudo nocturnos.”;
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– há regras estabelecidas para as terminações dos nomes dos taxa animais. Por exemplo, para a Família a terminação deve ser – idae. No caso das corujas, dos bufos e dos mochos há duas famílias, a Strigidae e a Tytonidae (a única espécie das que ocorrem em Portugal que pertence a esta segunda família é a coruja-das-torres, Tyto alba);
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– é necessário que as designações dos géneros, espécies e subespécies sejam escritas em itálico ou sublinhadas, no caso de documentos manuscritos ou em que a opção de escrita em itálico não esteja disponível;
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– o nome do(s) autor(es) não faz parte do nome do taxon; a sua citação é opcional, embora aconselhável. Deve ser feita pelo menos uma vez ao longo de um trabalho (textos académicos e científicos). Para além do nome do(s) autor(es), pode ser referida a data em que pela primeira vez o organismo foi descrito, por exemplo, Strix aluco Linnaeus, 1758. Se a espécie teve a sua posição taxonómica alterada por inclusão num género diferente do original, o nome ou a abreviatura padrão do autor original e a data de publicação original são fornecidos entre parênteses, por exemplo, Bubo bubo (Linnaeus, 1758).
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Coruja-moura.
Olhemos para a classificação científica das sete espécies de rapinas nocturnas que podem ser observadas em Portugal (não considerando a coruja-moura, Asio capensis, sem ocorrências no nosso país desde o século XIX [foto acima]):
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Reino Animalia (Animal)
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  – Filo Chordata (dos cordados)
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    – Classe Aves
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      – Ordem Strigiformes
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Os Strigiformes são uma ordem composta por um conjunto de aves que partilham entre si semelhanças na plumagem e na morfologia e que, por isso, formam um grupo distinto e facilmente identificável. No entanto, são também essas semelhanças aliadas a um parco conhecimento da ecologia e comportamento de diversas espécies que levaram ao questionamento, e continuam a propiciar o debate, relativamente à taxonomia deste grupo, tendo havido alterações a nível das subespécies, das espécies e mesmo dos géneros. Esta ordem engloba cerca 200 espécies (o valor varia entre cerca de 150 e 250, pelos motivos anteriormente mencionados), distribuídas por aproximadamente 27 géneros, sendo que é composta por duas famílias, a família Strigidae (6 espécies em Portugal) e a família Tytonidae (1 espécie em Portugal).
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Família Strigidae (mochos, corujas e bufos)
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Otus scops (Linnaeus, 1758)
No nosso país ocorre a subespécie Otus scops mallorcae, sendo também provável que durante o período de migração também ocorra a subespécie nominal (O. s. scops).
Bubo bubo (Linnaeus, 1758)
Em Portugal ocorre a subespécie Bubo bubo hispanus.
Strix aluco Linnaeus, 1758
Em Portugal ocorre a subespécie Strix aluco sylvatica.
Athene noctua (Scopoli, 1769)
Em Portugal ocorre a subespécie Athene noctua vidalii.
Asio otus (Linnaeus, 1758)
No nosso país ocorre a subespécie nominal (Asio otus otus).
Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)
Em Portugal ocorre a subespécie nominal (Asio flammeus flammeus).
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Família Tytonidae (corujas-das-torres)

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Tyto alba (Scopoli, 1769)
Em Portugal ocorre a subespécie nominal (Tyto alba alba) assim como, provavelmente, T. a. guttata, de distribuição mais setentrional. Referindo-se ainda que no arquipélago da Madeira está presente a subespécie endémica T. a. schmitzi.

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• Bibliografia utilizada para produzir o texto

Catry P., Costa H., Elias G. & Matias R. 2010. Aves de Portugal. Ornitologia do Território Continental. Assírio & Alvim, Lisboa.

Darwin C. R. 1859. On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. John Murray, London.

del Hoyo J., Elliott A. & Sargatal J. 1992. Handbook of the birds of the world. Volume 5. Lynx Edicions, Barcelona.

Encyclopedia of Life s/d. Disponível online: http://www.eol.org

International Commission on Zoological Nomenclature 1999. International Code of Zoological Nomenclature (4th Edition). International Trust for Zoological Nomenclature.

Knapp S. 2010. What’s in a name? A history of taxonomy. Natural History Museum, London. Disponível online: http://www.nhm.ac.uk/nature-online/science-of-natural-history/taxonomy-systematics/history-taxonomy/index.html

Linnaeus C. 1735. Systema naturae, sive regna tria naturae systematice proposita per classes, ordines, genera, & species. Haak, Leiden.

Linnaeus C. 1753. Species Plantarum. Stockholm, Sweden.

Linnaeus C. 1758. Systema naturae, sive regna tria naturae systematice proposita per classes, ordines, genera, & species (10th Edition). Haak, Leiden.

Mikkola H. 2013. Owls of the World. A Photographic Guide (2th Edition). Christopher Helm, London.

Mullarney K., Svensson L., Zetterström D. & Grant P. J. 2003. Guia de Aves. Assírio & Alvim, Lisboa.

NHM s/d. Taxonomy and systematics. Natural History Museum, London. Disponível online: http://www.nhm.ac.uk/nature-online/science