O biólogo Luís Gordinho aceitou desvendar alguns segredos do passado desta coruja em Portugal. Este ornitólogo viajou até ao século XIX, regressou aos museus, procurou informação recente e tentou perspectivar qual a possibilidade de existirem registos futuros, na Península Ibérica, desta espécie.
.
©Luís Gordinho
Janeiro 2017
A Coruja-moura, assim chamada por Sacarrão e Soares (1979) e por Costa et al. (2000), também foi designada como Coruja-d’água por Bragança (2002) e por Mocho-dos-pântanos ou Mocho do Cabo por Rosa Pinto (1983).
A estrutura e parte do conteúdo deste artigo seguem, de perto, o texto relativo à Coruja-moura publicado no livro “Aves raras de España” (de Juana 2006). Foi, no entanto, feita uma actualização do mesmo e, sobretudo, acrescentado um volume significativo de informação sobre os registos em Portugal (sobretudo proveniente de Bragança 2002 e Soares 1971). Em todo o caso, assume-se desde já que a originalidade foi preterida em prol da clareza e eficácia na transmissão da mensagem através de um formato consagrado.
.
Distribuição global, habitat e fenologia
A Coruja-moura é uma ave africana. A área de distribuição geográfica da espécie estende-se sobretudo para sul do Sahara [1] e, de forma mais contínua, pelo hemisfério sul. No entanto, algumas populações isoladas vivem na África Ocidental, incluindo Nigéria, Senegal, Mauritânia e noroeste de Marrocos. As principais autoridades taxonómicas reconhecem três subespécies de Coruja-moura: Asio capensis capensis, na África do Sul e a sul do Sahara; A. c. hova, em Madagáscar; e A. c. tingitanus (Figura 1), confinada a Marrocos (König et al. 1999).
Figura 1 – Coruja-moura, Merja Zerga, Marrocos.
Neste último país, a Coruja-moura foi em tempos relativamente comum em boa parte do litoral atlântico, de Tânger a Tetuan no norte, e até Mogador (Essaouira) no sul. Ali, em época de reprodução, ocupava sobretudo sapais (marismas), mas também prados, juncais e até searas de trigo. Recentemente, a sua nidificação foi confirmada na floresta de Ma’amora, num habitat completamente diferente (Hanane e Cherkaoui 2014): uma zona de herbáceas e arbustos (Chamaerops humilis, Teline linifolia, Cistus salviifolius e Lavandula stoechas) integrada numa matriz de sobreiral (Quercus suber). À data daquela publicação (e com n=1) não era, no entanto, claro se o uso desse habitat foi uma questão de opção ou oportunidade. Pelo contrário, actualmente a sua população é considerada muito ameaçada, com apenas 50 a 140 casais. As principais concentrações situam-se em Merja Zerga (20 a 30 casais, Figura 2) e nas marismas do baixo Lucus (Loukkos), sendo a foz do Tahadart a única localidade onde subsiste na Península Tingitana (Bergier e Thévenot 1991). O local de nidificação mais próximo da Península Ibérica continua a ser uns 50 km a sul de Tânger (de Juana e Garcia 2015).
Figura 2 – Coruja-moura. Merja Zerga, Marrocos.
Embora esta espécie seja considerada sobretudo sedentária, também estão descritos movimentos dispersivos e erráticos, aos quais se atribuem os poucos registos existentes na Península Ibérica e a descoberta de um cadáver no Banco de Arguim, Mauritânia (em Dezembro de 1982). A maioria dos registos marroquinos fora das localidades de reprodução têm lugar no Inverno, entre Novembro e Janeiro (Heim de Balsac e Mayaud 1962, Thévenot et al. 2003).
.
Registos históricos na Península Ibérica
Para Espanha, os dados históricos que parecem mais concretos e fiáveis são os de Irby (1895) relativos à antiga lagoa de La Janda. Esse autor relata que, na sua primeira visita a Casas Viejas (hoje Benalup de Sidonia) em Outubro de 1868, levantou duas aves e caçou uma e depois viu e abateu outra. Na segunda visita, efectuada a 10 de Novembro do mesmo ano, viu três e matou duas. Só voltou a encontrar esta espécie em Novembro de 1870, quando caçou mais uma e recolheu os restos de outra. No entanto, afirma que o Capitão Savile Reid obteve uma em Dezembro de 1873, e que outros também as cobraram nos invernos de 1882-83 e 1893-94. Saunders (1871) relata que dois dos espécimes obtidos por Irby mais tarde integraram a colecção de Lilford e acrescenta o seguinte registo anterior: uma ave caçada perto de Utrera, Sevilha, em Novembro de 1867. Estes dados, como se vê, são todos de Outono/Inverno e não fornecem qualquer evidência de possível reprodução, de que se chegou a suspeitar (Bernis 1954).
Para Portugal, Tait (1924) indica que o Rei Dom Carlos de Bragança caçou um exemplar em Pancas, estuário do Tejo. Sobre a Coruja-moura, Bragança (2002, cujo manuscrito é anterior a 1908 – detalhes em Gordinho 2006) refere: “De Arribação?” “Raro. O único sítio onde encontrei esta espécie foi o Sapal de Pancas. Matei aí dois exemplares, ambos no mês de Janeiro, e já mais vezes o tenho visto, mas sem nunca lhe poder atirar” (adaptado para português moderno pelo autor deste artigo). A estampa desta espécie que o Monarca mandou Enrique Casanova pintar é apresentada na Figura 3.
Figura 3 – Coruja-moura (Autor: Enrique Casanova in Bragança 2002).
Soares (1971) fornece bastante mais detalhes sobre um dos exemplares abatidos pelo Rei D. Carlos em Pancas. Atendendo à dificuldade de consultar esse trabalho e ao facto de a referida informação não se encontrar em mais lado nenhum, ela é transcrita quase integralmente no tópico seguinte.
.
Análise crítica aos detalhes do exemplar estudado por Soares (1971)
Começamos por apresentar a informação morfológica fornecida por Soares (1971) na Tabela 1 e algumas notas sobre a fórmula alar que permitem a sua correcta interpretação. Soares (1971) numerava as primárias de forma ascendente, ao contrário do actual standard em não-passeriformes (numeração descendente, cf. e.g. Cramp 1985, Baker 1993, Forsman 2016). Nas fórmulas alares que apresenta, lista as primárias numa linha (i.e. da esquerda para a direita), da mais curta para a mais longa. Paralelamente, lista ainda as primárias que apresentam emarginações (E, na face externa da pena) e entalhes (I, na face interna da pena).
Tabela 1 – Informação morfológica sobre um exemplar de Coruja-moura apresentada por Soares (1971).
O comprimento da asa direita indicado coincide com os valores médios referidos para as aves de África do Sul, embora a subespécie A. c. tingitanus seja a menor das três descritas (Mikkola 1983). No entanto, a única diferença biométrica significativa encontrada por C. S. Roselaar (in Cramp 1985) foi no comprimento do tarso, maior em A. c. tingitanus. A mesma fonte, para A. c. tingitanus, apresenta um comprimento médio superior ao referido por Soares (1971), 294 mm (284-303), mas estes valores combinam os dois sexos e os machos são mais pequenos. A diferença de comprimento entre as duas asas referida por Soares (1971) deverá ser um efeito assimétrico do embalsamamento. Convertendo a numeração ascendente das primárias de Soares (1971) na numeração descendente que se usa actualmente (5-10-6-7-9-8) e ordenando-as da mais longa para a mais curta (8-9-7-6-10-5) como faz Cramp (1985), é possível comparar directamente as duas fórmulas. Verifica-se que são praticamente iguais, tirando o facto de Cramp (1985) indicar p6=p10 e Soares (1971) p6>p10. Além disso, Soares (1971) não inclui p1 e p4 na fórmula. Fazendo o mesmo exercício com emarginações (E-8 a 9, 7 levemente) e entalhes (I-8 a 10), a correspondência uma vez mais é quase perfeita. Soares (1971) detalha que a emarginação na p7 é subtil e Cramp (1985) nota que o entalhe na p8 pode estar ausente, mas de resto é tudo igual.
Sobre o exemplar estudado, Soares (1971) refere também que se tratava de um macho colhido em Dezembro de 1887, montado em pedestal e conservado no Museu Bocage. Na etiqueta do exemplar podia ler-se: “Brachyotus capensis ♂ Dezembro 1887” “Strix aluco, coruja do mato ♂ macho”. Na antiga ficha podia ler-se ainda: “Asio capensis (Smith) nome vulgar mocho ♂ Port.” ?
Soares (1971) termina com a seguinte observação: “D. Carlos de Bragança (Obra inédita) refere na página 39 do volume I: ‘Asio capensis. Portuguez: coruja de matto. Sedentário. Encontram-se constantemente um ou dois no Sapal de Pancas, de verão ou de inverno.’. Vários autores, nacionais e estrangeiros, aludem a um exemplar morto pelo Rei D. Carlos, em Pancas. Nenhum autor faz referência à data de colheita nem ao Museu onde o exemplar se encontra. Pensamos que se referem ao espécime da colecção do Museu Bocage.”
O exemplar estudado por Soares (1971) terá ardido, junto com a maior parte da colecção do Museu Bocage, no grande incêndio da madrugada de 18 de Março de 1978 (Almaça 2000). A análise crítica aos detalhes morfológicos aqui apresentada sugere que o exemplar se encontrava bem identificado. Isto apesar da propensão para o lapso que certos pormenores poderiam sugerir: como o Strix aluco na etiqueta, o coruja-do-mato nas notas do Monarca e as duas versões sobre o mês de abate [Janeiro em Bragança (2002), Dezembro em Soares (1971)].
.
Registos recentes e futuros na Península Ibérica
O único registo homologado de todo o século XX em Espanha e na Europa refere-se a um exemplar de primeiro inverno na baía de Cádis, Andaluzia. Apareceu no dia 10 de Dezembro de 1998 na marisma de Bolaños, município de Jerez de la Frontera, ferido por arma de fogo, e foi transferido para o centro de recuperação de aves do parque zoológico desta cidade, onde morreu três dias mais tarde (I. Sánchez García e I. Fajardo in Ardeola 47: 150-1).
A situação, cada vez mais preocupante, da população que sobrevive no noroeste de África (ver e.g. Vaz Oliveira 2013) torna remota a possibilidade de haver registos futuros na Península Ibérica. Mesmo assim, se durante a prospecção nocturna de habitat adequado, ouvir um coaxar curto e de duração irregular (0,5-1,5 s) que lhe lembre o rasgar de um pano grosso, aproximadamente a cada 20 segundos, não deixe de gravar e confrontar com Robb et al. (2015)!
__________________________
[1] Neste texto, por opção do autor à qual o portal STRI é alheia, toda a toponímia segue Debenham e Vázquez Maure (1978).
.
.