Entrevista: Gonçalo Elias

Fevereiro 2014

– Esta pergunta ter-lhe-á sido colocada um sem número de vezes; no entanto não podemos deixar de a fazer: como, e quando, nasce este seu interesse pelas aves?

Nasceu quase por acaso, na primeira metade da década de 1980: um familiar tinha começado a interessar-se pela observação de aves, graças a um amigo, e às vezes convidava-me para ir com ele. Aos poucos fui-me interessando por conhecer melhor as espécies que ia vendo e a partir de certa altura passei a anotar tudo aquilo que observava, o que aliás ainda faço actualmente.

Ao fim de alguns anos, apercebi-me que o conhecimento sobre as aves do nosso país era ainda relativamente escasso e a partir daí fiquei com vontade de poder contribuir para aumentar esse conhecimento.

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Carriça.

– O ‘Fórum Aves’ reúne a maior comunidade online de observadores de aves em Portugal. Disponível ao público desde 2007, conta actualmente com mais de 1600 membros e é indiscutivelmente um lugar de referência para quem gosta de aves. A participação de alguns dos melhores especialistas na área da ornitologia e a sua disponibilidade na partilha de conhecimento é, seguramente, uma mais valia para todos os visitantes, membros ou não. Em 2008 surge o ‘avesdeportugal.info’, um portal repleto de informação que, presentemente, se impõe como a principal fonte de conhecimento na Internet, sempre que o assunto se relacione com aves. Como mantém,  sem quaisquer apoios, uma plataforma deste género? Como é gerir tudo isto?

O objectivo principal destes dois projectos é o de ajudar o público não especializado a saber mais sobre as aves portuguesas.

O Fórum Aves, lançado há quase sete anos, é hoje a maior comunidade online de observadores de aves em Portugal. Nele participam pessoas com os mais variados níveis de conhecimento e de experiência. É o espaço onde todos podem colocar questões e partilhar informação sobre as aves selvagens que ocorrem em Portugal.

A ideia de criar o portal avesdeportugal.info surgiu a partir da constatação de que não havia qualquer recurso online em português que disponibilizasse informação completa, detalhada e actualizada sobre as aves de Portugal. A pensar em todos os que gostam de observar aves selvagens, o desafio foi pois o de construir  um site tão completo quanto possível, que reunisse informação sobre todas as espécies de aves que ocorrem em Portugal e sobre os melhores locais para as encontrar, quer seja para as fotografar ou simplesmente para as poder identificar. Desde o seu lançamento em 1 de Janeiro de 2008 o site tem crescido continuamente e conta hoje com mais de 1000 páginas.

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Toutinegra-de-cabeça-preta.

– O livro ‘Aves de Portugal, Ornitologia do território continental’, publicado em 2010 e do qual é co-autor, irá, seguramente, manter-se, nos próximos anos, uma obra de referência. Como surge a ideia de levar a cabo  esta – pensamos poder chamar-lhe assim – empreitada? Quais as maiores dificuldades na preparação de um trabalho como este?

A ideia surgiu em 1997, durante a conclusão da primeira edição do ‘Birdwatcher’s Guide to Portugal’. Por essa altura começámos a falar da necessidade de produzir uma monografia actualizada sobre as aves de Portugal Continental (o último trabalho completo deste tipo, escrito por J. A. Reis Junior, datava de 1931, havia pois claramente necessidade de uma actualização). Pela minha parte, posso dizer que foi um projecto extremamente gratificante, principalmente devido a tudo o que tive oportunidade de aprender no decurso das investigações que foi necessário realizar para produzir essa obra.

Em minha opinião, a maior dificuldade resultou de um excessivo optimismo relativamente à nossa capacidade de concretização, que nos levou a subestimar o tempo que iria ser necessário para levar a cabo um projecto desta dimensão. A nossa estimativa inicial era a de que o projecto demoraria 3 anos a concluir. Esta estimativa revelou-se muitíssimo optimista, pois na realidade precisámos de 12 anos para concluir o trabalho… Ainda assim, apesar da longuíssima duração, parece-me que valeu bem a pena.

– O site ‘Aprender’, lançado recentemente no âmbito do portal avesdeportugal.info, dá continuidade a uma série de cursos online que vinham sendo disponibilizados no ‘Fórum Aves’. Existe, na sua opinião, um número cada vez maior de pessoas interessadas em aves e na observação de aves?

O aumento do número de pessoas interessadas nesta temática é visível a vários níveis: por um lado, no número de actividades, organizadas por entidades públicas e privadas, que vão tendo lugar um pouco por todo o país; por outro lado, na participação que existe na Internet, quer nas redes sociais, quer também no número de pessoas que participam nos nossos cursos online. Estes cursos, totalmente gratuitos, foram desenvolvidos a pensar nas pessoas que moram em regiões distantes, onde não são habitualmente organizadas actividades de observação de aves, e também naquelas pessoas que não dispõem de recursos para participar em actividades pagas.

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Galinhola.

– Completamente revisto em relação à edição de 1997, o livro ‘A Birdwatchers’ Guide to Portugal, the Azores & Madeira Archipelagos’, com data de publicação prevista para 17 de Fevereiro, inclui agora os Açores, tornando-se no único guia deste género a cobrir todo o território nacional. Quase 20 anos passados, esta nova edição vai de encontro a um público diferente? Na sequência da pergunta anterior, e tendo em conta que observa aves há muitos anos, como vê a evolução do birdwatching em Portugal?  Na sua opinião, o que poderia ser feito nesta área, de forma a potenciar este tipo de turismo?

8O público-alvo é essencialmente o mesmo da primeira edição: observadores de aves que pretendam dispor de informação sobre os melhores locais para ver aves em Portugal. Esta nova edição veio permitir actualizar uma série de informações que estavam obsoletas e já pouco ou nada tinham a ver com a realidade actual, desde a informação sobre os preços (na edição anterior ainda usávamos os escudos!) até à sugestão de novos itinerários de visita, tendo por base a rede viária actual. A inclusão dos Açores nesta segunda edição foi uma questão incontornável, tendo em conta o número crescente de observadores de aves, vindos de diferentes países europeus, que visitam esse arquipélago, especialmente em busca de espécies neárcticas, para as adicionarem à sua “lista de espécies do Paleárctico Ocidental”.

A evolução nos últimos trinta anos foi tremenda: passámos de uma fase em que havia poucos observadores, em que “toda a gente se conhecia” e em que as poucas pessoas que estavam profissionalmente ligadas à actividade trabalhavam para o Estado, para uma situação em que há centenas ou milhares de observadores amadores, bem como fotógrafos, e também muitas pessoas que desenvolvem actividades profissionais ligadas às aves, sejam elas de âmbito científico, comercial ou conservacionista.

Ainda assim, estamos muito longe da realidade de outros países: no Reino Unido ou na Suécia, por exemplo, há 20 anos já era muito frequente  cruzarmo-nos no terreno com outras pessoas a ver aves, mas em Portugal essas situações continuam a ser relativamente raras. As infra-estruturas existentes para apoio aos observadores de aves (percursos sinalizados, centros de interpretação, abrigos de observação) são ainda muito escassas e mesmo as que existem apresentam alguns problemas, como horários de abertura pouco adequados, má orientação das infra-estruturas de observação, falta de manutenção… creio que haveria muito a melhorar, aprendendo com o que de melhor se faz noutros países e nem é preciso ir muito longe: Espanha está muito à nossa frente nesta matéria.

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Pisco-de-peito-azul.

– Que condições oferece Portugal, em termos de diversidade? A nossa localização é particularmente favorável a algum grupo de aves, tendo em conta que a ocorrência da maioria das espécies é nas regiões tropicais?

Portugal tem uma diversidade considerável de espécies, sobretudo tendo em conta a dimensão relativamente pequena do país. Para isso muito contribui a sua localização num corredor migratório importante, junto à costa atlântica e não muito longe do estreito de Gibraltar, o que faz com que um grande número de espécies migradoras surja em Portugal no decurso das suas migrações. Por outro lado, o Inverno ameno faz com que muitas aves vindas do norte da Europa (sobretudo aves aquáticas, como patos, limícolas e gaivotas) escolham o nosso país para passar os meses mais frios. Em termos de aves nidificantes, ocorrem no país quase todas as espécies características do sul da Europa, que se distribuem pelas chamadas zonas de influência mediterrânica – incluem-se aqui inúmeras aves insectívoras, mas também várias espécies de aves de rapina e algumas aquáticas. Por fim, não podemos esquecer os arquipélagos dos Açores e da Madeira, que são muito interessantes para a observação de aves marinhas e também têm algumas espécies endémicas. No conjunto, podemos dizer que Portugal tem uma elevada diversidade de aves em todas as épocas do ano.

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Rouxinol-do-mato.

– Em relação à observação de aves, a recolha de dados e a posterior distribuição parece circular um pouco dispersa, o que dificulta a sua consulta. Não seria possível, na sua opinião, estabelecer um acordo entre as diversas plataformas existentes, com o objectivo de reunir todos esses dados num só canal de informação?

Não estou por dentro da gestão dessas plataformas, mas a sensação que tenho é que as várias plataformas têm objectivos distintos e que por isso o tipo de dados recolhidos por cada uma das plataformas não é exactamente igual. Antes de pensar numa possível integração seria necessário analisar se a área de sobreposição é grande ou não.

– Ainda no seguimento da pergunta anterior, de que forma são, ou poderiam ser, utilizados esses dados?

Os dados sobre a ocorrência das espécies servem, antes de mais, para aumentar o nosso conhecimento sobre a sua distribuição e a sua abundância. Esse conhecimento pode depois ser utilizado para fins científicos (como é o caso de estudos genéticos), mas também com objectivos comerciais (turismo, por exemplo) ou conservacionistas.

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Borrelho-ruivo.

– Parece existir uma certa necessidade em realizar viagens por parte dos observadores, tendo como objectivo principal a observação de novas espécies. A partir de que momento as aves que podia ver, em território nacional, deixaram de ser suficientes? Desde então, quantos países já visitou e qual o total de espécies vistas? E o número de espécies para Portugal? Já agora, quantas espécies de rapinas nocturnas já viu?

Na verdade, comigo o processo desenrolou-se ao contrário: eu comecei a viajar bastante pelo estrangeiro antes de começar a ver aves regularmente – quando era estudante, fazia viagens de comboio pela Europa com o cartão InterRail, com o intuito de conhecer outros países europeus. Quando comecei a ver aves mais a sério, apercebi-me que lá por fora (nomeadamente no Norte e no Leste do continente) era possível ver muitas espécies de aves que não ocorriam em Portugal, e então comecei a levar os binóculos nas minhas viagens. Na prática isto significa que comecei a ver aves no estrangeiro muito antes de esgotar, por assim dizer, aquilo que havia para ver em Portugal.

No conjunto já visitei 33 países diferentes e observei cerca de 1500 espécies, três quartos das quais em diversos países de África. No que se refere a rapinas nocturnas, vi um total de 16.

Estes totais de espécies são aproximados e poderão variar um pouco, dependendo da taxonomia considerada (por exemplo, não contabilizei a coruja-das-torres de Cabo Verde, que alguns autores consideram uma espécie separada, Tyto detorta).

– Um guia de aves, um binóculo e algum gosto pela Natureza podem ser um bom ponto de partida para começar a observar aves; no entanto, algumas pessoas parecem ficar um pouco desmotivadas, principalmente nas primeiras saídas para o campo, com a dificuldade encontrada na identificação das espécies. Mesmo a terminar, que recomendações pode dar a quem esteja a iniciar-se nesta actividade?

O aspecto que me parece mais importante salientar é que a observação de aves é uma actividade que pode ser realizada a qualquer hora e em qualquer lugar. Há muito quem tenha a ideia que é preciso levantar de madrugada e caminhar em terrenos enlameados ou cheios de vegetação densa, mas a verdade é que esta actividade pode ser feita de manhã ou de tarde, mesmo ao pé de casa, seja a partir da janela, seja nos terrenos circundantes.

Normalmente os melhores locais são os que têm algum tipo de vegetação e também os locais com água. Assim, para começar a ver aves pode-se começar por procurar um local interessante perto de casa, seja num parque, num terreno agrícola, num bosque ou num lago. É surpreendente a diversidade de espécies que existe à nossa volta. Por exemplo, só nos limites da cidade de Lisboa já foram registadas mais de 150 espécies, e num qualquer dia de observação em diferentes zonas desta cidade não é difícil encontrar 30 espécies ou mais.

Um binóculo é fundamental, pois permite observar as aves com mais detalhe, tornando mais fácil a sua identificação. Felizmente, hoje em dia existem binóculos a preços muito acessíveis. Também é útil ter um “guia de aves” (um livro ilustrado) que servirá de auxiliar para a identificação das espécies.

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Falcão-peregrino.

Adicionalmente, julgo que é bom poder contar com a orientação de alguém com mais conhecimento no tema. Assim, aqueles que ainda sentem dificuldades na identificação das aves podem optar por procurar o contacto com outros observadores mais experientes, acredito que isso os ajudará na aprendizagem. A participação em actividades organizadas também poderá dar uma ajuda. Outras pessoas optam por tirar fotos e colocar no Fórum Aves, pedindo ajuda para a identificação das aves fotografadas – o número de solicitações deste tipo cresceu de tal maneira, que optámos por criar no Fórum uma sala só para este efeito chamada ‘Pedidos de ID’.

 

E por fim, para quem esteja interessado não apenas em ver mas também em aprender mais sobre aquilo que vê, dou o mesmo conselho que me deu um observador experimentado há 25 anos atrás: vale a pena ir fazendo notas sobre aquilo que se observa, não apenas a lista de espécies mas também outras informações, como o habitat ou certos aspectos do comportamento. É surpreendente a forma como a nossa capacidade de observação se desenvolve quando passamos a estar atentos a estes pormenores.

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Gonçalo Elias

Dedica-se à observação e ao estudo das aves desde Dezembro de 1987. Tem uma ampla experiência de campo, aliada a um bom conhecimento do território, tendo já visitado todos os concelhos de Portugal Continental e quase todos os das Ilhas, bem como mais de 30 países, distribuídos por quatro continentes, com o intuito de observar aves selvagens. Colaborou em oito atlas ornitológicos em Portugal, Espanha e Tanzânia. É anilhador credenciado desde 1992. É autor ou co-autor de oito livros sobre as aves portuguesas e sobre os melhores locais para as observar.

Sócio fundador da SPEA, a cuja Direcção pertenceu entre 1999 e 2002. Foi coordenador do CPR-Comité Português de Raridades entre 2002 e 2006. Desde 2007, tem procurado promover a actividade de observação de aves usando os novos canais de divulgação, nomeadamente a Internet, tendo lançado em Janeiro de 2008 o portal avesdeportugal.info.

É licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores (IST, 1991), possui um MBA em Gestão de Empresas (UNL, 1996) e é formador profissional acreditado pelo IEFP – Instituto do Emprego e Formação Profissional.