Outubro 2013
– Ao abrirmos um dicionário de música, encontramos entradas tão diversas como música de salão, música de caminho-de-ferro, ou mesmo música de barbearia. Afastada a composição musical, pelo menos como objectivo principal, o que o levou a dedicar-se a esta actividade? O que possui o canto das aves de tão especial?
– O canto das aves é um convite para escutar, no sentido mais amplo desta palavra. Faz bem ao ouvido e à alma! Acho que gosto ainda mais de escutar a natureza no seu todo do que o canto das aves em particular.

– Grava os sons das aves pela sua musicalidade intrínseca, ou tem um interesse especial nas aves propriamente ditas? Consegue fazer esta separação?
No início gravei os sons das aves pela sua musicalidade intrínseca, sim, mas entretanto tenho muito interesse nas aves, por elas mesmas. Gosto do desafio da identificação pelos sons, gosto de treinar o meu ouvido para ouvir os pormenores, perceber o que é que está a acontecer na natureza.
– Registar sons da Natureza, com objectivos diferentes como, por exemplo, o de suporte a um filme, é uma vertente que lhe interessa?
Não, prefiro trabalhar com os sons como objectivo central. É raro encontrar filmes onde os sons sejam mais do que apenas o acompanhamento.
– A sua formação musical exerceu alguma influência na forma como começou a ouvir as vozes das aves?
De certeza que sim. A minha formação deu-me ferramentas para “gravar” os sons na memória, para perceber padrões e também para reconhecer novidades.
– O artigo publicado na ‘Dutch Birding’ (A new species of Strix owl from Oman), no seguimento do anúncio feito pela ‘The Sound Approach’ de uma nova espécie de coruja, a Strix omanensis, vem mais uma vez mostrar a importância das vocalizações na separação das espécies. O mesmo já tinha sucedido, em 2008, tendo possibilitado acrescentar novos dados ao trabalho realizado por Luís Monteiro, na década de 90, que permitiram a separação das espécies Oceanodroma castro e O. monteiroi. Como é que as vocalizações das aves podem revelar-se um dos factores principais na separação de uma espécie?
– Essa é uma pergunta que tem muitos livros como resposta. Resumidamente, as espécies de aves não precisam sempre de evoluir para uma plumagem distinta, mas quase todas têm uma voz diferente. Para uma ave nocturna, não vale a pena ter penas vermelhas quando o outro sexo não as consegue ver. Faz mais sentido comunicar mensagens como ‘estou saudável e disponível’, com os sons. No caso dos painhos, distinguidos por Luís Monteiro, os sons diferentes confirmaram uma diferença entre as populações. Diferença essa que já vinha sendo apontada com suporte nas biometrias, muda, etc. Outras vezes o som é o primeiro passo, como por exemplo no caso da Strix omanensis.

– Com a sua experiência na análise acústica das vocalizações, qual a sua opinião acerca do potencial do uso da identificação acústica individual para monitorização de populações? De que forma, na sua opinião, poderia ser possível aproveitar esse potencial, sendo que a individualização no imediato (no campo) é uma das limitações do processo?
Estamos a falar das aves nocturnas? O que faria mais diferença, na minha opinião, seria deixar gravadores no campo e analisar as gravações mais tarde. Muitas vezes estou a gravar uma espécie durante uma noite inteira, e depois, em casa, descubro que há outras coisas interessantes nas imediações; ou um Asio otus, ou um Otus scops e vocalizações de aves em migração, etc. As corujas chamam quando querem, e não quando nós, por acaso, estamos no seu território! O problema com este método é o tempo exigido para analisar, mas o uso de sonogramas pode acelerar muito o trabalho.
– Existe um longo caminho entre o trabalho de campo e o aparecimento dos registos num suporte disponível ao público em geral. Pode falar-nos, resumidamente, de todo este processo? É um trabalho realizado exclusivamente por si?
Infelizmente o trabalho de campo é apenas uma pequena parte do caminho. Depois tenho que escolher as gravações mais interessantes, cortar em sequências que façam sentido e colocar informação sobre essas sequências na nossa base de dados. No processo de fazer uma publicação tenho que consultar a base de dados, ouvir as gravações todas do assunto em questão, escolher a gravação que ilustra melhor o que quero dizer, procurar a parte mais bonita, “limpar” os sons que não quero ouvir – com uma alteração mínima da ‘verdade’. Em seguida escrevo o texto sobre o assunto, faço um sonograma da gravação – que mostra as características mais pertinentes do som – anoto o sonograma e depois faço todos os outros sonogramas do capítulo, exactamente da mesma maneira.

– Quantos países já visitou? Faz ideia do número de espécies que já gravou? Qual foi a maior deslocação que já realizou em busca de uma determinada espécie? Tem alguma história engraçada que nos queira contar?
É difícil responder sem dar a impressão de me estar a evidenciar, mas são factos. Já visitei 35 países, mais 5 onde não saí do aeroporto. Não faço ideia quantas espécies é que gravei, mas o número deve andar por volta de 1000. Só dentro de Portugal (incluindo as ilhas todas) já são 232 espécies. É raro viajar muito para gravar só uma espécie. No entanto, fui para Omã com o objectivo de gravar o Otus brucei, quando descobri a Strix omanensis!
A minha maior aventura foi uma visita ao norte da Sibéria, para gravar, entre outros, Bubo scandiaca, Rhodostethia rosea, Xema sabini, Somateria spectabilis. Fui sozinho até Yakutsk (via Moscovo e Novosibirsk) e passei os primeiros dias na taiga, a 1000 km sul da costa árctica, com um amigo da universidade de Yakutsk. Uma noite tive a sorte de encontrar um bando de Hydrocoleus minutus numa lagoa pequenina e fiz gravações lindíssimas. Voltei ao carro e entornei um copo de café cheio de açúcar em cima do gravador! No dia seguinte ia voar para o árctico, onde iria passar as próximas seis semanas, mas o gravador não estava a funcionar. Felizmente consegui encontrar alguém no serviço audiovisual da universidade, que conseguiu limpar o gravador antes do voo… Com vodka!

– Está presentemente a trabalhar num projecto relacionado com as rapinas nocturnas, o livro Undiscovered Owls. Pode falar-nos um pouco sobre este assunto? Quando é que o livro ficará disponível?
– O livro fala das corujas do Paleárctico Ocidental, o que corresponde mais ou menos à Europa, Norte de África e o Médio Oriente. O assunto principal são os sons das corujas, e o livro dá muita atenção às corujas meridionais e das ilhas atlânticas, que são muito menos conhecidas do que as espécies boreais. Há muita informação nova. Por exemplo, só encontrei uma frase, na literatura existente, sobre os sons do Bubo (africana) milesi e escrevi um capítulo sobre as nossas escutas e gravações. Ainda tenho nove capítulos para escrever, mas espero que o livro fique disponível no fim do Verão de 2014.