A Coruja-moura em Merja Zerga, Marrocos

Publicado originalmente em: 2013.05.15

A conservação parece assumir um papel cada vez mais importante para a maioria das pessoas. Abandonado o sentido literal da palavra, ela é feita, actualmente, não só tendo em conta a gestão racional de recursos naturais, mas também com o principal objectivo de assegurar a renovação desses mesmos recursos.

O ordenamento do território é um tema complexo e são inúmeros os factores que o influenciam. O desenvolvimento da agricultura é um dos principais factores da fragmentação dos habitats naturais, pois transformar a vegetação original em campos cultivados é abrir uma porta à erosão e à desertificação do solo.  Reduzido esse habitat, são também reduzidas as condições de sobrevivência de algumas espécies, implicando, desta forma, a necessidade de planos eficientes, que permitam um equilíbrio entre “colheita e renovação” – a reciprocidade essencial à verdadeira conservação. Esta ausência de planeamento parece ser o principal problema em Merja Zerga/Lagoa de Moulay Bousselham, em Marrocos.

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Quando falamos de observação de aves, qualquer local que se torne conhecido pela presença de determinada espécie menos comum ou com uma distribuição um pouco mais restrita, rapidamente se torna popular. São frequentes as discussões sobre este assunto e não haverá, seguramente, uma solução fácil para algumas das questões que o tema suscita.

No caso das ‘corujas de Merja Zerga’, os problemas parecem agravar-se. O turismo ornitológico exerce uma pressão intensa sobre o local e a perturbação e perda de habitat parecem ser os principais factores que contribuem para o declínio da coruja-moura (Asio capensis tingitanus)¹, nesta reserva biológica.

Aproveitámos a nossa breve visita a Marrocos para tentar esclarecer algumas questões relacionadas com estas aves. Depois de recolhida alguma informação, contactámos um guia para nos ajudar a escolher um local, onde fosse possível ver as corujas – uma pessoa com experiência reconhecida na observação de aves e com trabalho, no campo da ornitologia, realizado com uma espécie local.

A casa, onde fomos amavelmente recebidos, está localizada junto à lagoa, a cerca de 2 ou 3 km dos locais de nidificação das corujas. Durante o jantar, entre uma tajine e uns peixes fritos, a conversa esteve animada. Rapidamente nos apercebemos de que teríamos possibilidade de localizar e ver algumas corujas. Entusiasmado, o dono da casa, nomeado pelo nosso guia como “o guarda das corujas”, mostrou-nos uma fotografia onde era possível ver três crias no ninho. Procurámos esclarecer melhor este estatuto de ‘guarda’ do nosso anfitrião, mas as respostas foram sempre um pouco evasivas. Mais à frente, na conversa, ficou esclarecido que não era funcionário do estado nem pertencia a nenhuma associação que estivesse ligada a qualquer trabalho com esta espécie; o título de guarda, cada vez mais, se assemelhava a um crédito auto-atribuído.

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Entretanto, a conversa ia progredindo: “os problemas são muitos. Existem muitos guias que levam as pessoas aos ninhos no período mais sensível, entre Fevereiro e Abril. Dessa forma, o risco de as corujas abandonarem o local é grande.” Em relação a alguns dos nossos receios, quando questionado nesse sentido, pareceu-nos absolutamente convencido de que nos iria conduzir ao local, sem motivo para nos preocuparmos: «nesta altura do ano, as crias são quase voadoras, o risco de perturbação é mínimo; iremos também ter possibilidade de ver os adultos e, se vocês quiserem, podem fotografar as crias.»

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O dia amanheceu quente. As temperaturas médias, para esta altura do ano, rondam os 30ºC. Depois de um breve trajecto de carro, estacionámos e foi-nos dito que, a partir deste local, seguiríamos a pé. Atravessámos um campo com várias parcelas cultivadas, divididas por vedações de arame farpado, onde alguns homens estendiam mangueiras, utilizadas num sistema de rega gota-a-gota.

«Queremos criar uma associação que possa trabalhar em defesa das corujas. Neste momento, eu e um amigo, que participa em algumas acções com a BirdLife, estamos a estudar a possibilidade de organizar um grupo de trabalho, para fazer algo nesse sentido. Talvez vedar o terreno que as corujas utilizam. É muito triste ver que o governo não implementa nenhuma medida de protecção. As corujas, talvez pela pressão existente – as pessoas, a agricultura, etc. – têm vindo a mudar de local. Há 15 anos, eram facilmente visíveis, em números elevados, nas árvores do parque de campismo. Em 2005 e 2006, ainda nidificavam em vários locais próximos da lagoa. Hoje estão confinadas a 2 ou 3 locais, um pouco mais distantes, e aqui, em Merja, talvez existam pouco mais de 20 casais reprodutores.  No entanto, isto são estimativas; não há estudos recentes sobre o número de aves existentes. Há ainda alguns problemas com as crianças; algumas delas vão até aos ninhos e roubam os ovos. Por todas estas razões, aparentemente, os números têm vindo a descer. Sem quaisquer apoios do governo, toda esta reserva está um pouco entregue a si mesma. Que eu tenha conhecimento, só existem dois estudos feitos com estas aves. Da parte do governo, é o abandono total.»

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Coruja-moura.

A partir desta altura, começámos a questionar se o método a utilizar para vermos as corujas iria ser semelhante ao que tínhamos tido possibilidade de ler, na Internet, antes da nossa viagem. As respostas às nossas questões foram breves, turvas. No entanto, após 20 minutos de caminhada, não restavam dúvidas: o ‘guarda’ das corujas iria levantar do ninho uma ave. Esta foi uma realidade que pudemos confirmar. Por duas ou três vezes, a coruja levantou voo e pousou a uma distância segura. Foram perfeitamente audíveis as vocalizações dos juvenis, ainda no ninho. Não avançámos mais e recusámos ver o ninho. Foram 15 minutos estranhos. Olhámos uns para os outros e ficámos um pouco calados, talvez desiludidos. Questionámos o método. Interrogámo-nos sobre tudo o que nos tinham contado. Este local, afastado de qualquer estrada e parcialmente cultivado, não oferecia outra alternativa senão esta para ver as corujas. Pareceu-nos um facto impossível de contornar: a maioria das observações desta espécie é efectuada deste modo. «São poucas as vezes que trazemos aqui as pessoas. Talvez uma vez por mês e nunca no período mais crítico para as aves.» Pareceu querer diminuir os nossos receios.

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Explicou-nos que esta seria a área que gostariam de vedar. Perguntámos o que aconteceria às pessoas, como o nosso guarda, que ganham dinheiro mostrando estas aves a turistas, como nós. O que pensam elas sobre o assunto? Estariam dispostas a ver estes terrenos vedados? Como seriam as coisas a partir dessa situação? A resposta foi silenciosa… quase um rumor: “pois… não sabemos bem…”

Ambos, guia e guarda, pareceram-nos pessoas interessadas; não só nos aspectos conservacionistas em relação a esta rapina nocturna, mas também na protecção da biodiversidade em geral. Talvez um pouco abandonados. E este é um problema que não resolverão sós.

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Coruja-moura.

Talvez todos eles: outros guias, outros guardas tenham as mesmas preocupações, os mesmos métodos. A única certeza que trazemos é a de que, na ausência de uma política governamental, específica em relação a esta espécie de rapina nocturna, as perspectivas não parecem ser favoráveis. Trazemos também um pequeno sentimento de culpa… uma dúvida que diz respeito a uma  fronteira que, como em tantas outras situações, se desenha não em branco e preto, mas em vários tons de cinza. (Artur Vaz Oliveira, 2013)

 

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1 – Acidental (PT); ano 1887. Não voltou a ser registada em Portugal. (Fonte: Aves de Portugal. Ornitologia Do Território Continental. Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.)

 

• Lista de espécies observadas em Marrocos
(António A Gonçalves)

1. Anas platyrhynchos 2. Alectoris barbara 3. Coturnix c. coturnix 4. Podiceps c. cristatus 5. Phalacrocorax carbo (maroccanus?) 6. Ardea c. cinerea 7. Ardea p. purpurea 8. Egretta g. garzetta 9. Bubulcus i. ibis 10. Ardeola ralloides 11. Nycticorax n. nycticorax 12. Ciconia ciconia 13. Platalea l. leucorodia 14. Phoenicopterus roseus 15. Pandion h. haliaetus 16. Circaetus gallicus 17. Circus aeruginosus harterti 18. Circus pygargus 19. Accipiter n. nisus 20. Buteo rufinus cirtensis 21. Aquila pennata 22. Elanus caeruleus 23. Falco t. tinnunculus 24. Falco eleonorae 25. Falco pelegrinoides 26. Gallinula c. chloropus 27. Haematopus o. ostralegus 28. Himantopus h. himantopus 29. Burhinus oedicnemis saharae 30. Glareola p. pratincola 31. Vanellus vanellus 32. Pluvialis squatarola 33. Charadrius hiaticula 34. Charadrius alexandrinus 35. Arenaria interpres 36. Calidris alpina 37. Tringa totanus 38. Numenius phaeopus 39. Actitis hypoleucos 40. Larus fuscus (intermedius e graellsii) 41. Larus michahellis 42. Larus audouinni 43. Chroicocephalus genei

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Andorinhão-pequeno.

44. Chroicocephalus ridibundus 45. Gelochelidon n. nilotica 46. Chlidonias h. hybridus 47. Sternula a. albifrons 48. Sterna s. sandvicensis 49. Sterna bengalensis emigrata 50. Hydroprone caspia 51. Columba livia 52. Columba palumbus excelsa 53. Streptopelia decaocto 54. Streptopelia turtur arenicola 55. Cuculus canorus bangsi 56. Bubo ascalaphus 57. Asio o. otus 58. Asio capensis tingitanus 59. Tyto alba 60. Athene noctua glaux 61. Caprimulgus ruficollis 62. Apus a. apus 63. Apus pallidus brehmorum 64. Apus affinis galilejensis 65. Alcedo a. atthis 66. Merops apiaster 67. Coracias garrulus 68. Picus vaillantii 69. Dendrocopus major mauritanus 70. Alauda arvenses 71. Galerida cristata 72. Galerida theklae 73. Calandrella brachydactyla 74. Lullula arborea pallida 75. Eremophila alpestris atlas 76. Riparia paludicola 77. Ptyonoprogne rupestres 78. Hirundo rustica 79. Cecropis daurica 80. Delichon urbicum 81. Motacilla flava iberiae 82. Motacilla c. cinerea 83. Cinclus cinclus minor 84. Prunella c. collaris 85. Erithacus r. rubecula 86.

 

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Rabirruivo-mourisco.

Luscinia m. megarhynchos 87. Phoenicurus p. phoenicurus 88. Phoenicurus ochrurus gibraltariensis 89. Phoenicurus moussieri 90. Oenanthe seebohmi 91. Oenanthe h. hispanica 92. Oenanthe leucura syenitica 93. Saxicola rubetra 94. Saxicola rubicola 95. Turdus viscivorus deichleri 96. Turdus merula mauritanicus 97. Monticola s. solitarius 98. Monticola saxatilis 99. Sylvia atricapilla 100. Sylvia m. melanocephala 101. Sylvia cantillans 102. Cettia cetti 103. Acrocephalus scirpaceus 104. Hippolais polyglotta 105. Iduna opaca 106. Phylloscopus trochilus 107. Cisticola juncidis 108. Regulus ignicapilla balearicus 109. Troglodytes troglodytes kabylorum 110. Muscicapa striata 111. Ficedula hypoleuca 112. Parus major excelsus 113. Periparus ater atlas 114. Cyanistes c. ultramarinus 115. Lanius meridionalis algeriensis 116. Lanius senator rutilans 117. Pycnonotus barbatus 118. Pica pica mauritanica 119. Garrulus glandarius minor 120. Corvus monedula spermologus 121. Pyrrhocorax pyrrhocorax barbarus 122. Pyrrhocorax g. graculus 123. Corvus corax tingitanus 124. Sturnus unicolor 125. Oriolus oriolus 126. Passer domesticus 127. Passer hispaniolensis 128. Petronia petronia barbara 129. Fringilla coelebs africana 130. Carduelis cannabina mediterranea 131. Carduelis carduelis parva 132. Carduelis chloris 133. Serinus serinus 134. Bucanetes githagineus zedlitzi 135. Rhodopechys sanguineus alienus