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Qual o futuro das aves de rapina nocturnas em Portugal foi o exercício que o investigador Rui Lourenço aceitou fazer, desafiado pelo STRI. Juntou informação científica a alguma “especulação” e, com cautela, deixou-nos o seu ponto de vista sobre este assunto.
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©Rui Lourenço/Fevereiro 2017
(LabOr – Laboratório de Ornitologia, LabOr, ICAAM – Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas, Universidade de Évora; GTAN-SPEA – Grupo de Trabalho sobre Aves Nocturnas, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves)
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Aquando do desafio lançado pelo STRI para escrever um artigo onde abordasse a minha perspectiva futura sobre as aves de rapina nocturnas em Portugal, percebi que seria uma oportunidade de fazer um exercício mais livre dos constrangimentos habituais das revistas científicas internacionais. Mantendo na mesma o máximo rigor científico que me é possível, poderia acrescentar algumas pinceladas de especulação. Raramente é dado algum espaço para a especulação nos artigos científicos. Por outro lado, em fora informais de discussão científica, pode (e deve) haver momentos de “pura especulação”. De ideias possíveis (ou impossíveis) podem sair caminhos a percorrer e até teorias futuras. Num discurso directo e para um leitor atento, a especulação sobre um assunto é apenas uma explicação hipotética colocada pelo autor. No entanto, num artigo científico (isto é, ao ficar escrito e ser largamente difundido) pode surgir o principal “lado negro” da especulação: esta pode transformar-se numa verdade absoluta e indiscutível quando sujeita à transmissão distorcida a terceiros ou a uma leitura muito superficial. Para evitar isto, tentei rodear-me do máximo de informação científica, de modo a ter de recorrer ao mínimo de especulação pessoal, na hora de tentar antever o que o futuro poderá reservar para as aves de rapina nocturnas. Acabei por centrar-me em Portugal continental, por não dispor de informação suficiente para as regiões autónomas da Madeira e dos Açores.
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A primeira informação científica à qual recorri foi a tendência populacional das aves nocturnas em Portugal, resultante do programa Noctua-Portugal (Tabela 1; GTAN-SPEA 2016). Este programa de monitorização de aves nocturnas em Portugal é realizado, desde 2009, por vários colaboradores voluntários do GTAN-SPEA (Grupo de Trabalho sobre Aves Nocturnas da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves). À semelhança de outros programas idênticos, possui algumas limitações inerentes à recolha de informação por múltiplos observadores, à qual acresce a heterogeneidade temporal e espacial. Mas esta é a melhor referência sobre tendências populacionais, disponível para Portugal, para este grupo de aves, resultando de um esforço considerável (e admirável) de cidadãos interessados.
É igualmente útil ter em consideração a tendência populacional em Espanha (programa Noctua, SEO/BirdLife; Escandell 2016b), pela sua proximidade geográfica e forte relação entre as populações de aves ibéricas. A metodologia é igual à utilizada no programa Noctua em Portugal, pelo que os dados são comparáveis, permitindo uma interpretação complementar das tendências nos dois países.
Por fim, há que considerar ainda a tendência das espécies na Europa e a sua tendência global (i.e. a distribuição mundial de cada espécie). Estas estimativas são regularmente publicadas pela BirdLife International em parceria com a IUCN, resultando de fontes de informação diversas.
O mocho-galego Athene noctua, por ser bastante activo durante o dia, é uma espécie frequentemente detectada nos censos de aves comuns. Assim, os resultados destes programas em Portugal e em Espanha adicionam informação complementar sobre a tendência populacional desta espécie. As restantes nocturnas não são regularmente detectadas nestes programas de monitorização. Segundo o Censo de Aves Comuns (CAC; Meirinho et al. 2013), a tendência do mocho-galego em Portugal (2004-2011) é incerta (variação do índice de 1%).
De acordo com o censo de aves comuns em Espanha, programa Sacre (SEO/BirdLife; Escandell 2016b), o mocho-galego apresenta um declínio moderado contínuo de 2009 a 2015. Para o período mais geral (1998-2015), esta espécie apresenta um declínio acentuado.
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Quando as variações populacionais de uma espécie são pouco acentuadas, normalmente estas são apenas detectadas pela tendência populacional (positiva ou negativa). Eventualmente, nos limites de distribuição podem detectar-se ligeiros aumentos ou regressões da área de ocorrência da espécie. Contudo, quando as populações sofrem fortes declínios ou aumentos populacionais, quase sempre é possível observar uma diminuição ou expansão da área de distribuição. Consequentemente, a análise das variações a médio ou longo-prazo da distribuição das espécies de aves de rapina nocturnas em Portugal representa uma informação importante para determinar a sua tendência populacional. Esta informação foi recolhida e compilada no âmbito do relatório sobre a Directiva Aves que os países membros da União Europeia realizaram em 2014, tendo sido elaborado em Portugal pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF 2014).
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A informação sobre as tendências populacional e espacial dá-nos uma imagem no momento presente da situação das espécies. Por um lado, para estimar o que acontecerá às espécies no futuro é possível supor que a tendência se manterá igual nos anos seguintes. Contudo, esta abordagem, embora simplista, pode ser melhorada, se forem tidos em consideração os factores ambientais que têm originado um aumento ou declínio das espécies. A melhor indicação para tal, é analisar quais os factores de ameaça e assim prever no futuro se estes factores se irão manter, acentuar ou atenuar. Os principais factores de ameaça das aves de rapina nocturnas estão relativamente bem avaliados por algumas entidades, sendo enumerados em vários documentos, nomeadamente o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal (Cabral et al. 2006), a “Red List for Birds” da IUCN e BirdLife International (datazone.birdlife.org).
Após reunir os factores de ameaça identificados para as aves de rapina nocturnas em Portugal (Tabela 3), tive em consideração a importância de cada factor. O passo seguinte, e talvez o mais importante, foi estimar se esse factor tem tendência, num futuro próximo, a diminuir, manter-se ou aumentar. É sempre necessária alguma especulação, mas alguns padrões são relativamente previsíveis, tendo em consideração o actual contexto socio-económico europeu. Não menos importante, é fundamentar a tendência de cada factor de ameaça.
Avançando por fim para uma antevisão da situação futura das aves de rapina nocturnas em Portugal (Tabela 4), optei por traçar como objectivo um intervalo temporal curto. Neste caso, tomei como referência para a estimativa um horizonte de 8 anos, ou seja, o ano 2025. Defini três categorias (ligeiro, moderado, acentuado) para as tendências de decréscimo ou aumento. Gostaria de reforçar uma vez mais que este exercício tem um elevado grau de incerteza, devendo ser interpretado com cautela e nunca fora do seu contexto.
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Para concluir, deixo algumas medidas que poderão contribuir para que a situação futura das aves de rapina nocturnas seja mais positiva, de modo que todos nós possamos continuar a orgulhar-nos de ter um país com elevados valores naturais.

• Implementação de ninhos artificiais (caixas-ninhos) para as aves de rapina nocturnas, sobretudo em florestas degradadas e de produção, e em zonas agrícolas intensivas. As aves de rapina podem ser um importante contributo para controlar pragas agrícolas (roedores).
• Implementação de medidas para reduzir o atropelamento. Nesse âmbito existe um projecto LIFE que vale a pena conhecer.
• Monitorização das populações de aves de rapina nocturnas em Portugal. Neste sentido é importante a colaboração de todos em projectos como o Noctua-Portugal e o Atlas de Aves Nidificantes.
• Educação ambiental. Este continua a ser o principal pilar da conservação em todo o mundo. Deve ser a maioria das pessoas numa sociedade a estar consciente da importância dos valores naturais e a querer conservá-los.
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