O Mistério Nocturno das Remotas Florestas da Ilha do Príncipe

©2014 Martim Melo/martim.melo@cibio.up.pt

 

As ilhas oceânicas são conhecidas por terem uma fauna e flora com uma composição bem diferente daquela encontrada nos continentes vizinhos. Não só a sua diversidade é mais pobre, como as espécies das ilhas não são uma amostra aleatória das espécies presentes no continente. Não existem mamíferos – com excepção de morcegos – e raramente encontramos anfíbios e mesmo répteis. A explicação para este desequilíbrio é simples – chegar a um bocado de terra perdido no meio do mar requer a capacidade de atravessar esse mar. É necessário voar ou nadar – e quem nada não pode ser intolerante à água salgada.

No caso das aves, existem alguns grupos que parecem ter uma propensão especial para colonizar ilhas. Os pombos são um bom exemplo. Nas ilhas tropicais e subtropicais os ‘olho-brancos’, pássaros que formam a sua própria família, os Zosteropidae, não falham. Esta família de pequenas felosas, gregárias e omnívoras (alimentam-se de insectos, frutos e mesmo de néctar), é caracterizada por povoar vastas áreas continentais com poucas espécies, muito parecidas e próximas, e capazes de realizar grandes deslocações em busca de alimento. Estes movimentos em grupo favorecem a colonização bem-sucedida em ilhas. O interessante é que, uma vez chegados a uma ilha, têm tendência a perder rapidamente o seu comportamento nómada e, assim, diferenciam-se em novas espécies. Mais de 80% das espécies deste grupo são espécies endémicas de ilhas oceânicas. O género Zosterops é hoje aquele com o maior número de espécies – cerca de 100.

Existem também outros grupos menos óbvios com enorme sucesso em colonizar ilhas. Um deles é o dos ralídeos (frangos-de-água). Estas pequenas aves que não imaginamos como grandes viajantes, não só colonizaram a maior parte das ilhas oceânicas, como aí, rapidamente, a maior parte das espécies perdeu a capacidade de voar. Talvez seja por essa razão que, hoje em dia, ninguém se lembra dos frangos-de-água como espécies típicas de ilhas oceânicas – após a colonização destas ilhas por humanos, quase todas estas espécies desapareceram. Estima-se no entanto que, num passado não tão distante quanto isso, existiriam cerca de 2000 espécies de frangos-de-água não voadores espalhados pelas ilhas oceânicas do mundo: 20% do número de espécies de aves actualmente existente…

Outro grupo, menos óbvio como colonizador de sucesso de ilhas oceânicas, é o dos mochos do género Otus, os mochos-pequenos-d’orelhas, que, na gíria anglófona, são conhecidos como os ‘scops owls’, devido ao Otus scops euroasiático. Nalgumas regiões, como as ilhas do oceano Índico, parece que cada ilha tem o seu Otus. E não faltam casos de ilhas, em que se julgava não existir qualquer Otus – para depois estes virem a ser descobertos em florestas remotas ou, por vezes, não tão remotas assim.

Foi por essa razão que fiquei muito excitado, mas não surpreendido, quando em 1998 me deparei com a possibilidade da existência de uma espécie de Otus nunca descrita na ilha do Príncipe. A ilha do Príncipe, em conjunto com a ilha de São Tomé, formam o segundo país mais pequeno de África, a seguir às Seychelles, com perto de 1000 km². Constituem, no entanto, um centro de biodiversidade que, para o seu pequeno tamanho, em muitos aspectos não tem paralelo, pois ainda existem vários locais especiais para a biodiversidade no mundo. Mas, para que esta afirmação não seja o cliché gasto da maioria dos documentários ou panfletos turísticos para qualquer sítio do mundo, ficam aqui alguns factos:

  • Florestas de São Tomé: segundas mais importantes de África para a conservação de aves – estudo de 1988.
  • Florestas de São Tomé e Príncipe: terceiras mais importantes do mundo para a conservação de aves – estudo de 2011.
  • Parque Natural de São Tomé: a 17ª área protegida do mundo mais insubstituível – estudo de 2013 que analisou um total de cerca de 170,000 / 170.000 áreas protegidas.
  • Parque Natural do Príncipe: 265ª posição no mesmo estudo – note-se que tem apenas 30 km².

Assim, estava eu nas florestas do sul do Príncipe, as mais próximas das condições originais, em Outubro de 1998. Estava a fazer um estudo do papagaio-cinzento (Psittacus erithacus) e comigo estava o Bikegila, apanhador de papagaios (hoje técnico do parque natural estabelecido em 2006). Numa conversa à volta da fogueira, o Bikegila mencionou dois casos de apanhadores de papagaios que ao irem buscar crias a um buraco numa árvore depararam-se, em vez disso, com um ‘bicho feio’, de ‘olhos grandes’, etc. O Bikegila estava presente numa dessas ocasiões, a segurar a corda por onde o outro apanhador tinha subido. Um dos apanhadores tinha morrido entretanto, mas o outro, o Sátiro, apontou sem hesitar para a ilustração do Otus hartlaubi (espécie endémica de São Tomé), quando coloquei as pranchas com as ilustrações de todas as espécies das ilhas à sua frente.

Ao regressar a casa, percebi que não tinha feito uma descoberta original. A 3 de Outubro de 1928, José Correia, um colector português ao serviço do American Museum of Natural History, escreve numa carta, no seu característico ‘inglês de ouvido’ para o seu empregador F. Murphy: “Wols I never saw any here; some the residents here told me that there as few in the wild forests but it may can taking ten years before they can find one” (sic). Traduzindo: José Correia nunca viu um mocho mas foi informado de que existiam alguns na floresta – mas que poderiam passar 10 anos sem que algum fosse observado. O Padre René de Naurois, um pioneiro da ornitologia de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, também recolheu informação de pessoas locais sobre a existência de um mocho nas florestas. A minha ‘descoberta’ não era por isso descoberta nenhuma, mas o facto de outros dois observadores, independentemente de terem recolhido informações semelhantes às minhas, dava imediatamente uma credibilidade muito maior à possibilidade de existir um mocho ainda por descrever nas florestas do Príncipe. Outro dado importante: das quatro ilhas do Golfo da Guiné (Bioko, Príncipe, São Tomé e Annobón) todas têm uma espécie de Otus nas suas florestas – todas, menos o Príncipe claro. De certa forma, esta ausência não faz muito sentido.

 Em 2002 voltei ao Príncipe e apontei directamente às florestas do sul. Mantendo-me acordado uma noite inteira, gravei as vocalizações do que poderia muito bem ser o misterioso mocho do Príncipe. Começavam quando a noite caía na floresta e acabavam mesmo antes da primeira luz dar sinal de si. Pareciam ser emitidas relativamente alto, na copa das árvores, eram rápidas (cerca de uma nota por segundo) e duetos, ou vários indivíduos em simultâneo, eram comuns. O que me fazia mais acreditar tratar-se de um mocho, era um miado ‘qui-au!’ que, por vezes, intercalava os muitos ‘tu-tu-tu…

Mas poderia ser uma rã – existem 3 espécies nas florestas do Príncipe – ou talvez um morcego-da-fruta, capazes de emitir vocalizações deste tipo? Uma análise dos sonogramas veio mostrar que as vocalizações têm a mesma frequência do que as vocalizações de outras espécies de Otus, frequência essa muito distinta das vocalizações das rãs. Especialistas em morcegos africanos disseram-me que não lhes lembrava nenhuma espécie. A mim preocupava-me a rapidez das vocalizações, mas verifiquei que existem espécies de Otus que ainda repetem notas mais rapidamente (o Otus rutilus de Madagáscar emite 3 notas por segundo).

 Sempre que no decorrer das minhas investigações sobre as espécies endémicas de São Tomé e Príncipe passava pelas florestas do Rio Porco, as misteriosas vocalizações preenchiam a noite. Em 2007, juntamente com o Martin Dallimer, arranjámos financiamento para estudar o raríssimo Tordo do Príncipe e, ao mesmo tempo, procurar o misterioso cantor. Tivemos sucesso com o Tordo, não tanto com o presumível mocho. Descobrimos novas áreas nas florestas do sul onde se podia ouvir o seu canto. Uma vez ouvimo-lo durante o dia – algo comum com o mocho-pequeno-d’orelhas de São Tomé. Mas, nada de ver um mocho. A única conclusão foi a de que se for um mocho o autor das vocalizações, então será certamente uma espécie nova pois este canto não é conhecido de nenhuma outra espécie.

 O mistério continua. Novas buscas serão feitas – quem sabe se por leitores desta página armados de paciência, da gravação misteriosa, boas lanternas e uma boa dose de sorte. E, não menos importante, com uma autorização do Parque Natural do Ôbo do Príncipe para visitar as florestas do ‘mocho’ – classificadas como reservas integrais e em princípio fechadas ao público. Ou, quem sabe, um dia quando menos se esperar o mocho é que virá ter connosco, fotografado por algum turista desconhecedor do mistério, enquanto passeia pelo seu resort

Gravação trabalhada para playback – inclui cantos repetidos do mesmo indivíduo: 

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Vocalizações do possível mocho-pequeno-d’orelhas do Príncipe. Inclui a nota típica, repetida a intervalos de 1 segundo e intercalada pelo grito tipo miado ‘qui-au’:
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Actualização em 2016.07.21

A scops-owl (Otus) discovered in the forests of Príncipe Island (Gulf of Guinea)

21 Jul 2016 – 13:00 — José Luis Copete

In July 2016, an exploration in search of Otus owls on Príncipe Island by Philippe Verbelen confirmed the existence of what seems to be an undescribed species. Its possible existence on Príncipe was discussed previously by Melo and Dallimer in 2009 (Is there an undiscovered endemic scops owl Otus sp. on Principe Island? Malimbus 31: 109–115). They recorded the calls of what was probably a scops-owl, having the same frequency as the calls of other scops-owls, while being distinct from any known species. This, together with reports from parrot harvesters who saw, in tree holes, a bird whose description seemed like a small scops-owl Otus sp., suggested the presence of an undescribed species on Príncipe. However, it had not been observed by ornithologists, until now.

Verbelen saw at least two different birds, and was able to photograph both. He explored the same forest where Melo and Dallimer obtained their first recordings. With hard work and patience, Verbelen obtained good sound recordings of the scops-owl. Using his own recordings to lure the bird, he was fortunate to attract two birds, at very close range, only 3 m from him. The calls were heard at various locations indicating that the scops-owl is not uncommon in undisturbed forests.

This is the first confirmation of the presence of a scops-owl on Príncipe. The difference in vocalizations, when compared with those of the São Tomé Scops-owl (Otus hartlaubi), suggests it could be an undescribed species. Work is currently in progress to confirm, and eventually formally describe the bird, by a team comprising Philippe Verbelen, Martim Melo and George Sangster