O Tobias Querias Querias

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O Tobias é um mocho-galego que parece uma bola – assim do tamanho de uma mão fechada. Baixo e com uma cauda tão curta, tudo nele faz lembrar uma meloa, daquelas pequenas. Todos os dias, assim que sai de casa, encosta-se a uma parede do velho armazém e, ansioso, estica o mais que pode o pescoço e vê se a sua cabeça chega finalmente ao parapeito da janela. Ele bem se estica; espalmado contra a parede, em bicos de pés, vemos o Tobias a medir a sua altura, com a cabeça virada para o céu, olhos postos na janela. Desanimado, anda ao longo do muro, senta-se, pescoço encolhido, o que o faz parecer ainda mais baixo. Isto, se não estiver nenhum dos amigos a passar próximo. Nessas alturas, o Tobias tem um pequeno truque: de olhar desviado, coloca-se de lado, encolhe a barriga, aperta as asas contra o corpo e, esforçando-se para que ninguém se aperceba, anda em bicos de pés. Com uns passinhos curtos, equilibra-se o melhor que pode e passeia ao longo do muro. Se querem que vos diga a verdade, eu acho que esta técnica nunca funcionou muito bem; caso contrário, por que motivo chamariam ao Tobias o querias, querias? Pois, pois. Todos os outros mochos da sua idade, aqueles que vivem mais próximos, gritam, ao passar por ele a voar:

– Ó Tobias, querias, querias…
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Desta forma, o nosso mocho, pequeno, como uma meloa pequena, passou a ser conhecido como Tobias Querias, Querias. Tudo, porque queria ser mais alto. Bem, é verdade que todos estes mochos são um pouco baixos. E também é verdade que o nosso Tobias é um pouco mais pequeno que os outros; mas nenhum dos mochos amigos do Tobias é muito alto. Eles até são, todos eles, assim para o curtinho. (E, aqui para nós, isto é um segredo que vos conto, eu acho que todos eles queriam ser um pouco mais altos. Digo isto porque sempre que vejo um destes mochos, eles olham para mim, muito sérios, e apressadamente esticam as patas e o pescoço, fazem uma cara de poucos amigos e, como se estivessem a fazer ginástica, encolhem e esticam o corpo, acima, abaixo e quase parecem dizer: olha, olha como eu sou alto, como eu sou grande.)
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Ainda sobre estes assuntos do tamanho, o Tobias tem uma amiga, quase da sua idade, que não é um mocho. A Mafalda é uma coruja. E, como tal, é mais alta que o Tobias. A Mafalda e o Tobias são grandes amigos. E à Mafalda tanto se lhe dá que o Tobias seja um pouco baixinho. Ela gosta muito de estar com ele. Sempre que pode, voa desde a sua casa, no outro lado da aldeia, até casa do Tobias. Mas a Mafalda não gosta muito de brincar de dia; quando aparece, já as luzes da igreja estão acesas e quase não há carros na rua. Ao contrário, o Tobias está sempre pronto para a brincadeira. De dia ou de noite, sempre que os pais autorizam, lá anda ele de árvore em árvore ou enfiado nos buracos mais estranhos que consegue encontrar. Por vezes, contrariando tudo o que os pais lhe dizem, arrisca voar para o alto de uns postes que ficam junto à estrada, que passa perto de casa dele – o que não deixa de ser um pouco perigoso, pois é um local com muitos carros.
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Mas é de noite que costumam brincar juntos. E foi numa noite quente de Verão que o Tobias e a Mafalda viveram esta aventura que vou contar-vos.
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Tobias estava entretido a contar as badaladas que anunciavam a chegada da Mafalda. Eram nove. Sempre pontual, a sua amiga coruja chegava pouco depois do sino da igreja bater nove vezes. E hoje, Mafalda chegava muito entusiasmada. Assim que pousou no muro onde estava o Tobias, de tão excitada, quase engolia as palavras que queria dizer. Tinha um local novo para irem explorar. Um local diferente de todos os outros onde já tinham estado. Misterioso e um pouco assustador, dizia ela, mas definitivamente um local a conhecer. Tinha passado lá perto, com os pais, e, ao espreitar para o seu interior, ouvira o som mais bonito que alguma vez tinha ouvido. Mafalda não sabia bem de onde vinha, nem o que estava na origem daquele som, mas, hoje, com a ajuda do Tobias, tencionava descobrir. Sem perder tempo, explicava ao Tobias que teriam de voar até junto da casa abandonada, perto do rio, já no final da povoação. “Ali”, dizia Mafalda, batendo as asas sem sair do mesmo sítio, assim como as pessoas esfregam as mãos, “há uma pequena entrada, bem escondida entre umas pedras, de onde vêm os sons.”.
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E assim, sem mais demoras, o Tobias e a Mafalda voaram, lado a lado, em direcção ao local. Contornaram a casa do Tobias, ganharam um pouco de altura, sobrevoaram a igreja e lá seguiram para o fundo do povo (que é como os habitantes desta aldeia chamam a este local, mesmo no fim da povoação); um lugar que o Tobias, guloso como nenhum outro mocho, já conhecia. Tudo por causa de um pessegueiro que, com os seus ramos estendidos mesmo por cima de um tanque, sempre cheio de água fresca, estava habitualmente rodeado de uns gorduchos insectos, tão ao gosto do nosso mocho.
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A viagem não ia ser muito demorada. Apesar de ser um pouco distante, tanto o Tobias como a Mafalda voavam já muito bem. Pararam para descansar um pouco, no muro encostado ao pessegueiro. No telhado da última casa da aldeia está um mocho. Tobias já o conhece. De tal forma que, instintivamente, coloca-se em bicos de pés – mesmo a esta distância, não quer arriscar parecer baixo. Mafalda sorri e diz-lhe para se deixar de tolices; também ela conhece aquele mocho e não tem ideia de que seja mais alto que o Tobias. Toca-lhe com uma das asas nas costas e, com uma gargalhada, parte num voo suave e ondulante.
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“É um local fascinante”, diz Tobias ao chegar ao rio. “Está tão escuro, sem as luzes da aldeia, que as estrelas parecem mais brilhantes, parece outro céu”. Entusiasmado, Tobias segue Mafalda até à entrada secreta. Ao longe, um leve ruído de água, que nós não ouviríamos seguramente, sobrepõe-se ao silêncio. É o rio que embate numa pedra para logo de seguida a contornar.Os dois amigos estão um pouco nervosos. Saltam duas ou três pedras e aproximam-se de um buraco, escondido entre as rochas. Olham para todos os lados. Imóveis como as pedras onde estão, Tobias e Mafalda ouvem então alguns sons: parece música.
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“Acho que devemos entrar”, diz Mafalda, lançando ao Tobias um olhar de desafio. E foi assim que acabaram por entrar – Mafalda com um pouco mais de esforço, pois a passagem era muito pequena, e Tobias num instante. Agora, que se encontravam dentro do buraco, apercebiam-se do tamanho do lugar. Era, afinal, uma gruta. E, por estranho que pareça, havia mais luz que no exterior – das paredes chegava um brilho que iluminava com uma tonalidade verde pálida todo o lugar. Era um espaço bonito. Incrédulos, olhavam os dois para todos os lados. Em redor, havia pedras, umas por cima das outras, que lembravam grandes esculturas, uns gigantes de olhos esverdeados. No tecto, existiam buracos que pareciam balões verdes. O som que os tinha trazido até aqui era, agora, perfeitamente nítido. Suspensas no tecto da gruta, estavam dezenas de gotas de água: umas muito altas, outras mais próximas do chão, caíam alternadamente num pequeno lago, no canto da sala. O eco dentro da gruta fazia aumentar o som, prolongava-o e, uma e outra vez, ouviam-se as gotas a caírem; notas vibrantes, graves, agudas, para, em conjunto, ecoarem pelo ar como se fosse uma melodia saída do mais afinado dos xilofones. Mas, subitamente, ouviu-se um barulho diferente. Tobias e Mafalda olharam para a estreita entrada e quase morreram de susto: ao passarem para o interior, devem ter deslocado alguma pedra que, mal apoiada, tinha caído e arrastado outras pedras consigo – a entrada tinha-se fechado. Estavam presos no interior da gruta.
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Eles bem voaram de um lado para o outro, entraram pelos buracos do tecto, mas não parecia haver outra saída. Ao fim de quase uma hora, não tinham descoberto nada que os deixasse mais animados. Até a melodia, construída pelas gotas, começava, agora, a incomodar.
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Mafalda choramingava. Estava arrependida de terem passado para o interior da gruta. Queria piar por ajuda, mas não podia. Sempre que o fazia, o eco trazia de volta a sua voz e ficava ainda mais assustada. “A culpa não foi tua”, dizia-lhe Tobias, tentando acalmá-la, “eu também quis entrar. Se ao menos alguém soubesse que estamos aqui”. Os dois sabiam que tinham desobedecido aos pais. Não deviam ter passado a estrada da igreja. Eram terrenos que conheciam mal, para onde só iam os adultos e onde podiam acontecer situações com as quais não saberiam lidar.
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Tobias esforçava-se por parecer calmo. Esforçava-se, também, por pensar. A avó dizia-lhe sempre (e a avó era a ave mais sábia de toda a aldeia), que “nós, os mochos, resolvemos tudo com a cabeça, com a inteligência”. Mafalda sorriu, ao ouvir Tobias dizer isto, e, com um carinhoso encosto de asas no amigo, disse-lhe: “Vês… eu tenho desculpa, pois sou uma coruja, mas tu, meu querido mocho, não foste muito esperto, ao entrar aqui comigo.”.
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E assim as horas foram passando, até ao dia nascer. Os primeiros raios de sol apareceram e fizeram entrar um pouco de claridade na gruta. Tobias voou ao longo da faixa de luz que atravessava a escuridão e, piando de alegria, descobriu, junto ao tecto, uma passagem por onde entrava um raio de sol. Chamou Mafalda; tinha a certeza de ser o rio o que via através da pequena abertura. Mas a alegria foi sol de pouca dura… o buraco era tão pequeno, que até o Tobias teria dificuldade em passar – imaginem a Mafalda! Mas não havia nada a fazer, o Tobias tinha mesmo de tentar, não podiam ficar ali fechados para sempre.
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Nesta altura da história, já todos vocês sabem o que aconteceu. O nosso mocho, pequeno como uma mão fechada, conseguiu passar pelo buraco e, valentemente, partiu em direcção à aldeia. Sozinho, foi chamar todas as aves que conhecia: amigos, familiares, todas. Até o bufo-real, a ave mais forte das redondezas, veio de longe, das escarpas lá na serra, para ajudar. Tobias, tal era a urgência da situação, abandonou completamente o truque dos bicos de pés, ao falar com os amigos. Não porque o quisesse fazer, mas porque nem se lembrou.
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Assim acabou a nossa história. O pequeno Tobias portou-se como um herói. Foi muito corajoso, ao passar por um buraco tão apertado e procurar ajuda para a Mafalda. Parece que, depois desta aventura, estão um pouco menos curiosos, mais atentos aos conselhos dos adultos. É claro que os dois continuam grandes amigos. Acompanhados pelos pais, que conhecem bem todas as entradas que existem, voltaram novamente à gruta, um lugar muito bonito. E todos os outros mochos deixaram de chamar querias, querias ao Tobias. Brincam agora juntos e o Tobias já não anda em bicos de pés. Eu tenho-os visto, de cá para lá, sem se afastarem muito de casa, numa algazarra constante. E sim, é verdade que o Tobias é um pouco mais pequeno que os outros mochos; mas, agora que ele não pensa nisso, não se nota nada.