…
Todos sabemos que os ratos e as corujas não são grandes amigos. Têm, como dizem os mais velhos, uma relação de costas voltadas – pelo menos no que diz respeito aos ratos! No entanto, é uma relação já antiga, e, como em tudo na Natureza, se vós, as pessoas, não interferirdes muito, continuará, como até agora, com espaço suficiente para a existência dos ratos e das corujas.
Ora bem, eu sou uma coruja-do-mato. Tenho quase um ano e chamo-me Nuvem. Eu sei, eu sei… não é um nome muito adequado a uma coruja, admito, mas começaram a chamar-me Nuvem, desde que voei pela primeira vez. Diz a minha mãe que todas as corujas voam de forma silenciosa, mas que eu pareço quase não voar. Desloco-me de tal forma, que, sem o mínimo ruído, a maioria das vezes, ninguém se apercebe da minha presença e, como as nuvens, passo muitas vezes por cima das pessoas, sem elas me conseguirem ver – a minha mãe lá sabe! Honestamente, eu penso que essas pessoas devem andar um pouco distraídas – como é que alguém pode deixar de reparar nas nuvens? Enfim, a verdade é que Nuvem é mesmo o meu nome, goste-se ou não… e se juntarem a todas estas justificações a minha cor, cinzenta, como aquelas nuvens que aparecem nos dias de chuva, talvez o nome não seja assim tão desadequado – o meu irmão podia muito bem chamar-se Pêssego… (mas falaremos dele lá mais para a frente). Avancemos agora para o que realmente importa: esta história que vocês vão ler fala de pessoas, corujas e ratos. E se, logo à partida, poderiam pensar que já sabem tudo sobre personagens como estes, desenganem-se! Pois, pela primeira vez, na história do Universo…
I
… reinava um tempo de paz entre as corujas e os ratos. O problema que existia era de tal forma grave, que ratos e corujas tinham decidido enfrentá-lo em conjunto. O porquê destas tréguas é o que vamos explicar de seguida:
O sr. Hipólito era um agricultor orgulhoso da sua quinta e, de forma muito especial, das suas maçarocas de milho. Isto fazia com que, de tanto adorar o seu milho, em igual medida, odiava os pequenos ratos que se alimentavam do mesmo! Na realidade, não havia nenhum outro animal que o sr. Hipólito detestasse tanto como os ratos e tudo fazia para se ver livre deles. Havia já vários meses que o sr. Hipólito escolhia locais por onde os ratitos gostavam de passar e por lá deixava alguns grãos dourados do seu milho, cobertos por uns pozinhos misteriosos. Os ratos tinham ficado espantados,; depois de tão perseguidos, nem queriam acreditar na bondade do sr. Hipólito. No entanto, não está no coração dos ratos cultivar a desconfiança, muito mais, relativamente a um assunto tão saboroso: grãos de milho dourados, como o sol de Junho. Não hesitaram e sempre que encontravam o milho com os pozinhos mágicos, comiam até se fartarem, até quase não conseguirem correr até às suas tocas!
Só que algo de muito estranho aconteceu, desde o primeiro dia em que os ratos foram presenteados pelo sr. Hipólito, com o milho. Desde esse dia que em todas as tocas faltavam ratos! Todos os ratos andavam tristes e preocupados, já havia tocas em que não havia nenhum ratito!
Os ratos sabem, desde pequeninos, que devem evitar os gatos da quinta, as águias-d’asa-redonda, que durante o dia sobrevoam os milheirais, e as corujas, que ao anoitecer cantam do bosque que contorna a quinta. Desde pequeninos são avisados, desde pequeninos que o seu instinto os aconselha a evitar tais companhias, e, por isso, são mais as vezes que lhes conseguem escapar do que as vezes que acabam como refeição! Podemos dizer que se trata de uma disputa justa: tanto a presa como o caçador respeitam as leis da Natureza! Esta nova ameaça não era justa para os ratos; não só não a entendiam – como é que o alimento lhes podia fazer mal? – como não tinham forma de se defender! Estava-se a viver um período negro na quinta do sr. Hipólito e não era só para os ratos…
II
Pois, como já tínhamos dito, a quinta do sr. Hipólito ficava muito próxima do bosquete de carvalhos, onde habitava a nossa família de corujas-do-mato. Desde crias, a Nuvem e o Ruivo (o Ruivo tinha uma plumagem arruivada que lembrava a cor de um pêssego, daí a sua irmã, na brincadeira e para o arreliar, lhe chamar Pêssego, o que, a bem da verdade, era um termo carinhoso, mas deixava o nosso Ruivo furioso) conheciam a quinta do sr. Hipólito, isto, porque da cavidade do tronco do velho carvalho que a sua mãe tinha escolhido para ninho, avistava-se toda a extensão da quinta. A mãe, preocupada, sentia receio por as suas crias se sentirem tão fascinadas pela quinta e pelos seus habitantes; ela, que já tinha visto passar muitos Invernos, não confiava no Homem e sabia que as vantagens de uma aproximação raramente superavam o risco… Mas principalmente o Ruivo não se cansava de olhar para lá e ansiava pelos seus primeiros voos para explorar a quinta, que ele pensava estar cheia de ratitos, a sua refeição favorita! A Nuvem também sonhava, com os primeiros voos e até com a quinta, mas sentia-se melhor no bosque; gostava da companhia das árvores e de ver o luar entre a folhagem dos velhos carvalhos e das bétulas esguias.
A Primavera chegou e passou e as nossas corujas já voavam tão bem como o vento; e numa daquelas quentes noites de Verão, o Ruivo decidiu ir caçar para os lados da quinta. Viu um ratito junto ao milheiral e não hesitou, capturou-o e assim encontrou a sua refeição! O ratito tinha estado a comer os grãos de milho deixados pelo sr. Hipólito e, apesar de o Ruivo não saber, já não conseguia correr, estava muito, muito doente!
No dia a seguir, a Ritinha (a Ritinha era neta do sr. Hipólito; e no coração do sr. Hipólito, nem a quinta nem o milho superavam o amor que ele sentia pela neta) encontrou o Ruivo caído no chão, sem conseguir voar! Desatou num pranto tal, que o sr. Hipólito apanhou o maior susto da sua vida e rapidamente foi ver o que se passava!
– Ritinha, o que se passa? – Perguntou o sr. Hipólito muito aflito.
– É a coruja, avozinho, está muito doente, não consegue voar! Temos de fazer alguma coisa! – E a Ritinha, por mais promessas que o avô lhe fizesse, não abandonou o Ruivo e não se conformou enquanto o avô não lhe prometeu que iria tratar do assunto!
– Pronto, pronto, minha menina, vou ligar para o doutor, para ver o que podemos fazer! – O sr. Hipólito tinha-se lembrado de ter ouvido falar num hospital para animais silvestres e foi a correr para casa fazer o telefonema e tentar ajudar a pequena coruja (mais por amor à neta do que por pena do animal, mas é assim que as coisas começam a mudar….)!
O que se passou depois mudou a história daquela quinta, dos seus ratos, das vizinhas corujas e dos restantes animais que partilhavam aquela terra!
III
Algum tempo depois, durante o entardecer, quando já a Nuvem e a sua mãe não acreditavam tornar a ver o Ruivo, andando ambas muito tristes e desoladas, o Ruivo surgiu a voar dos lados da quinta.
Tinha sido a Ritinha a soltar o Ruivo.O Ruivo tinha estado a ser tratado no tal hospital para animais silvestres (a esses hospitais chamam-se centros de recuperação de animais silvestres) e os senhores que lá trabalhavam tinham explicado à Ritinha e ao seu avô qual tinha sido a causa da “doença” da nossa coruja-do-mato: tinha sido envenenamento! O ratito tinha comido os grãos de milho com os pozinhos e o Ruivo, ao se alimentar do ratito, também sofreu os efeitos do veneno! Eram os tais pozinhos que o sr. Hipólito colocava no milho os responsáveis por todas as desgraças que se andavam a passar na quinta: o desaparecimento de famílias inteiras de ratos, a morte de alguns animais, como a velha doninha, que há já muito tempo vivia por ali perto, e a doença do Ruivo! A Ritinha, que adorava animais, fez o sr. Hipólito prometer que nunca mais iria utilizar os pozinhos! Na realidade, o próprio sr. Hipólito estava triste com o que tinha provocado e não hesitou em fazer a promessa. Melhor do que tudo, a partir desse dia, honrou-a e nunca mais naquela quinta se usaram os pozinhos.
Depois das tréguas mais terríveis que a quinta tinha vivido, voltou a luta diária e milenar entre ratos e corujas. Mas era uma luta justa, e todos andavam alegres; vivia-se um período de paz, tanto no bosque, como na quinta! Muitas vezes, no ocaso, a Ritinha ficava à janela a olhar para o bosque e a pensar no Ruivo, na Nuvem e em todas as outras corujas e não conseguia deixar de sentir orgulho no seu avô, por este ter decidido proteger os animais. Quanto a ela, já tinha tomado uma decisão: quando crescesse, queria trabalhar num desses hospitais, onde ajudam os animais silvestres a tornar a ser livres!