O Gaspar e a Julieta

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Ilustrações: Artur Brandão, 4 anos

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Estava a ser um Inverno muito rigoroso, talvez o mais frio dos últimos anos, e, como se não bastasse, neste mês de Janeiro, ainda não tinha parado de chover. E era uma chuva inclemente, de pingos grossos, daquela que nos gela até à alma. Desta forma, a vida não estava nada fácil para as personagens da nossa história. Pousados numa pequena escarpa formada por uma rocha, mesmo sobranceira ao rio, que corria indiferente ao mau tempo, o Gaspar e a Julieta reflectiam sobre esse mesmo assunto: tinha chegado a época de prepararem o nascimento dos seus filhos e conversavam sobre qual seria o melhor local para a Julieta pôr os ovos – uma tarefa complicada a que o tempo não estava a prestar grande ajuda. Há que dizê-lo: os dois grandes bufos estavam bastante preocupados! A época de criar os filhotes era a mais sensível de todo o ano, a que acarretava mais custos e preocupações – escolher o melhor local, procurar alimento para a Julieta, que, no ninho, a chocar os ovos, não se pode ausentar para caçar, proteger os filhotes de vários perigos… bem, a lista é interminável! O mau tempo não vinha, de forma alguma, ajudar este casal. Teriam, forçosamente, de seleccionar um local mais abrigado, mas, ao mesmo tempo, mais acessível a possíveis predadores, e com o frio, a Julieta teria uma tarefa bem mais árdua a aquecer os ovos e o Gaspar, igualmente, a encontrar alimento para os dois!

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O Gaspar e a Julieta são dois bufos-reais. Aves nocturnas, grandes, as maiores de todas as que habitam a noite. Possuem uns olhos, alaranjados e luminosos, que parecem duas nêsperas, bem colados naqueles rostos redondos. Quem olhar, uma vez que seja, para os olhos de um bufo-real, nunca mais vai esquecer a experiência! Naquela altura do ano, a questão era sempre a mesma: onde iria ser o ninho para os pequenotes nascerem? O Gaspar preferia utilizar aquela pequena varanda, na escarpa, junto ao rio; por outro lado, a Julieta, sempre mais precavida, tinha algumas dúvidas, principalmente naquele ano. Desde Dezembro que os dias eram muito ventosos e, ao mínimo descuido, os ovos poderiam muito bem rolar pela escarpa abaixo e caírem no rio. Por essa razão, ela sentia-se predisposta a utilizar o mesmo local do ano passado, onde tudo tinha corrido bem. A verdade é que a chuva, empurrada pelo vento, tornava-se cada vez mais incómoda e parecia reforçar a opinião de Julieta. A decisão estava tomada – concordaram em regressar ao solo, para junto da velha azinheira seca. Bem junto das suas grandes e protectoras raízes, abrigados das péssimas condições que se faziam sentir, teriam novamente um excelente abrigo. A Julieta ficava assim mais descansada e o Gaspar não se importava de ceder – o que ele queria era que a sua futura família tivesse as melhores oportunidades possíveis!

E, assim, ao fim de umas semanas, tudo corria como planeado, com a Julieta e o Gaspar muito orgulhosos dos seus 3 lindos ovos brancos. A Julieta deitava-se gentilmente sobre eles, protegendo-os, mantendo-os quentes e raramente se ausentava do ninho, o que não era uma tarefa fácil! O Gaspar, por sua vez, incansável, ia e vinha, atarefado, trazendo à Julieta os melhores petiscos que conseguia alcançar e transformando a noite num verdadeiro carrossel! E não havia esforços a que ele se poupasse, para que a Julieta tivesse o que comer. O local escolhido era agradável e sossegado – permitia-lhes ultrapassar esta fase, sem aumentar as dificuldades que, por si só, esta tarefa apresenta. Este é um trabalho exigente para as aves; o Gaspar e a Julieta que o digam. Caçar por dois, no caso do Gaspar, tratar dos ovos, no caso da Julieta, e isto debaixo de preocupações constantes, com possíveis perigos para os seus ovos e também para eles, era obra! E aquele lugar, no chão, podia muito bem ser mais abrigado, é verdade, mas era também de fácil acesso, sendo necessária uma atenção redobrada, pois, ao contrário do lugar na escarpa, onde dificilmente seriam vistos, ali, no solo, seria muito fácil serem encontrados por alguém. Assustados, podiam muito bem decidir voltar à ventosa escarpa e começar tudo de novo… já imaginaram a complicação? E que triste seria perderem aqueles ovos, depois de tanto carinho e atenção que lhes tinham dispensado. Partiria o coração a qualquer pessoa!

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E foi mesmo num passeio pelo campo que o Jorge e o primo, ambos de férias, viram a Julieta. Inicialmente, até ficaram um pouco assustados, pois nunca tinham visto uma ave tão grande. Deram mesmo, de caras, com a Julieta a olhar para eles. Curiosos, e ainda a uma certa distância, recuaram e esconderam-se. Cautelosamente, espreitaram entre as árvores e, boquiabertos, olharam um para o outro, admirados com o que viam. “É uma águia”, dizia o Jorge. E o primo confirmava, “sim, não pode ser outra ave, assim tão grande. E que linda que é!”. Voltaram para casa a correr, o mais depressa que as suas pernas lhes permitiram, queriam contar esta descoberta ao pai do Jorge, ele sabia tudo sobre as aves. Além disso, como bom benfiquista que era, eles sabiam que de águias é que ele percebia!

Ora, nós já sabemos que a Julieta não é uma águia. É verdade que é grande, maior, até, que algumas águias, mas não é uma águia. Ao contrário destas, a Julieta prefere sair e voar de noite. E aqueles olhos, bem destacados na cabeça grande e redonda, são, ao contrário do que sucede nas outras aves, como os nossos, colocados na frente do rosto. Foi isto mesmo que o pai do Jorge, que, para além de gostar de futebol, é um ornitólogo amador, ou seja, gosta de observar e estudar as aves, explicou ao mostrar umas fotografias de um livro, que permitiram identificar e confirmar qual a espécie de ave que tinham o Jorge e o António observado. Também lhes explicou que o bufo-real, a espécie que tinham visto, era uma ave de rapina nocturna e que, ao contrário das águias, caçava maioritariamente de noite! Daí ter aqueles grandes olhos e uma plumagem que lhe permitia voar sem fazer barulho, patas com penas, para não perder calor durante as esperas nocturnas, no período de caça,  garras fortes que não deixavam escapar as presas e um bico curvo que não enganava ninguém: era definitivamente uma espécie carnívora!

Futuramente, como também explicou o pai do Jorge, não deveriam aproximar-se. Iriam sempre manter-se no lado do rio oposto ao ninho, bem afastados, para não arriscarem assustar a ave. O Jorge e o primo ficaram muito entusiasmados, pois o Sr. Rui tinha razão: a partir desse lugar, mais afastado, com o auxílio de uns binóculos, a ave nem se aperceberia da presença deles, possibilitando, dessa forma, que a pudessem ver sem a perturbar. E não havia nada no mundo que eles mais quisessem! Queriam observar, é certo, mas não queriam, de maneira nenhuma, prejudicar aquela ave tão bonita!

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Durante algumas tardes, o Jorge e o primo não abandonaram o local. Sempre utilizando os binóculos, puderam observar muito bem tudo o que acontecia. Mas as férias estavam mesmo a acabar e os dois teriam de regressar novamente à escola. Tristes, falaram com o pai do Jorge. Como haveriam de saber o desfecho desta história? De saber algo mais sobre estas aves? E foi assim que, num instante, ficou tudo combinado: voltariam nas férias de Verão, pois haveria grandes possibilidades de, nessa altura, verem os pequenotes já crescidos.

E tempo passou…

Pois é! O tempo passou e o Gaspar e a Julieta tiveram 3 lindos filhotes. Um deles era ligeiramente mais pequeno do que os outros, mas muito bonito e espertalhão. O Jorge, o António e o Sr. Rui passavam os finais de tarde sentados no banco de pedra que havia junto ao rio. Quase ao cair da noite, a comer a merenda que levavam sempre com eles, ficavam os três em silêncio, sem dizer mesmo uma palavra e, emocionados, olhavam uns para os outros e trocavam olhares sorridentes, com aquela cumplicidade de quem vê e compreende a Natureza…

Foram umas férias marcantes e inesquecíveis. Aconselhados pelo Sr. Rui, registaram muitos pormenores do comportamento destas aves e, quase sem darem conta, escrevinharam o suficiente para completar um caderno bem gordo – estavam uns verdadeiros naturalistas amadores! Voltaram os dois muito entusiasmados para a escola. Tinham muitas ideias. Teriam de falar com a professora e com os companheiros sobre tudo o que tinham visto. Talvez pudessem fazer um trabalho, conversar com os colegas sobre estes dias passados no campo, a observar aves. Os dois tinham aprendido muito com o pai do Jorge e com os bufos-reais. As férias, e todas as observações que se seguiram, acabaram por permitir ao António e ao Jorge aprenderem muito sobre uma grande diversidade de aves. Naquele novo ano, na escola, teriam muitas novidades para partilhar com os colegas. Começariam por ensinar-lhes o nome de todos os passarinhos que costumavam aparecer no jardim da escola e tinham a certeza de que, assim que chegasse o Natal, todos iriam querer, como prenda, um binóculo para ver aves. E não se esqueceriam de avisar os colegas de que, quando se fazem observações, se deve sempre respeitar os animais. No coração do Jorge e do António, no entanto, haveria sempre um lugar especial para as rapinas nocturnas e para os dois bufos-reais, a Julieta e o Gaspar, que os fizeram olhar para a Natureza de uma outra forma!